Confesso que vivi as tensões e o encantamento da vida de médico
Redação
Publicado em 25 de agosto de 2015 às 23:00 | Atualizado há 9 anosO pé de manacá floriu, lembrei-me do amigo Nazário!
Quantos anos!
Oh! meu Deus! Um dia, após uma das reuniões da Associação de Ostomizados de Goiás, o sr. Nazário Alves de Paula (pai da minha querida amiga, médica dra. Valquiria, esposa do meu, também amigo, dr. Honor Cruvinel), trouxe-me, enrolado em um pedaço de jornal, uma muda de planta e me disse:
“Dr. Hélio, este pé de Manacá, que cuidei por quase seis meses para crescer a muda, trouxe para o senhor plantá-lo na Santa Tereza!”
Hoje, ao vê-lo florido, senti muita saudade do sr. Nazário! Sentei-me à um banco que “plantei” nas suas imediações e voltei ao passado.
Era professor na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás e acabava de voltar de um estágio no exterior (coloproctologia em Londres) onde tive oportunidade de observar a maneira de como eram tratados os pacientes portadores de ostomia (pacientes com graves lesões do intestino que impedem a passagem de fezes pela via normal, obrigando o cirurgião a fazer um “desvio”, colocando o intestino do lado de fora do abdome, por onde são desviadas as fezes que são recolhidas em um dispositivo – bolsas de plástico).
Naquela época (1977) nossa problemática em Goiás era dramática, além de sofrer discriminação, os pacientes não tinham condições financeiras para comprar as bolsas coletoras que possuíam uma substância que aderia à pele do abdome, impedindo “escape” de fezes.
Era comum em nossos ambulatórios assistirmos, impotentes, um quadro dantesco: alguns pacientes chegavam usando, como coletores de fezes, “sacos de plásticos” daqueles utilizados nas indústrias de laticínios para armazenamento do leite e, o que era mais grave, estes “sacos” eram presos no abdome do paciente por intermédio de um barbante, ocasionando, então, escape de matéria fecal para suas vestes.
Diante dessa triste realidade, convidei as amigas Elizabeth Caixeta e Maria Aparecida Veloso, respectivamente assistente social e enfermeira do Hospital das Clínicas da UFG e resolvemos, nos três, criar uma Associação de Ostomizados no ambiente do Hospital das Clínicas.
Em setembro de 1978, durante um congresso da nossa especialidade em Porto Alegre, consegui uma ajuda de custos para que Elizabeth Caixeta nos acompanhasse, para assistir um curso sobre cuidados aos pacientes portadores de ostomias, que foi ministrado pela enfermeira norte-americana Normal Gill que, também, sinalizou a necessidade de se criar “clubes de pacientes Ostomizados”; Beth voltou muito animada da viagem e, embalado por este seu entusiasmo, orientei a realização de um curso educativo dirigido à equipe de enfermagem do nosso hospital, sobre cuidados aos pacientes portadores de ostomia.
Em 1979, novamente Elizabeth Caixeta, viaja à procura de aperfeiçoamento: vai à Fortaleza para visitar o Clube de Ostomizados do Ceará, na busca de novos subsídios sobre a temática, neste mesmo ano de 1979, Beth viaja novamente, agora na companhia da nova entusiasta da causa, a enfermeira Maria Aparecida Veloso, ao Rio de Janeiro, com o mesmo desiderato (haurir conhecimentos da Associação de Ostomizados do Rio de Janeiro).
Finalmente, em 27 de abril de 1979, foi criada a Associação de Ostomizados de Goiás, a 3ª a ser implantada no Brasil, em uma das dependências do Hospital das Clínicas da UFG, com a presença de alguns ostomizados e seus familiares, médicos, enfermeiras, assistentes sociais psicólogas e nutricionistas.
A partir daquele momento histórico, o movimento cresceu, tanto em número de associados com ostomia como consubstanciou a criação de uma equipe multiprofisisonal para integrar o núcleo de apoio à Associação.
No começo de 1980 foi eleita a sua 1ª Diretoria, a sra. Dalva Pereira Naves assumiu a presidência, junto com dois outros elementos que não mais se afastaram da Associação, sr. Nazário Alves de Paula, tesoureiro e Parecida de C. Mateucci, assistente social.
Fazíamos reuniões mensais quando, ao lado de discutirmos a problemática da ostomia (cuidados, lições de higiene, dietas, etc.), havia atividades festivas, principalmente após termos conseguido montar “uma fábrica de bolsas”, idealização artesanal de um dos associados.
Lembro-me, com muita saudade, das nossas festas; Marília, minha esposa, era a encarregada de organizá-las e por isto, ela envolveu nossos filhos (José Paulo, Hélio Júnior e Ana Paula). Faziam “saraus” de canto (Hélio Júnior tocava violão e José Paulo e Ana Paula cantavam). No final do espetáculo, tínhamos a presença querida do padre Hebert Lima que fazia uma oração e algumas vezes, rezava missa em nosso ambiente!
O número de associados aumentava cada vez mais, principalmente depois que começamos a distribuir “nossas” bolsas, gratuitamente, desde que o paciente participasse da sua confecção. O espaço que nos era cedido pelo Hospital das Clínicas tornara-se muito pequeno. Precisávamos de uma sede!
Naquela época era prefeito de Goiânia meu saudoso amigo, o médico dr. Goianésio Ferreira Lucas; pedi-lhe uma área para construção de nossa sede e ele a concedeu (imediações do estádio Serra Dourada), porém, não havia meio de conseguir a documentação (ele estava em litígio com a Câmara de Vereadores).
Depois veio o mandato do dr. Nion Albernaz e continuava nossa via sacra na busca do documento que não saía. Um dia resolvi, em comum acordo com meus companheiros da associação, que deveríamos “invadir” o terreno que o dr. Goianésio nos havia cedido.
Trouxe da minha chácara a madeira e as ferramentas, comprei o arame e pregos e, em um domingo, bem cedo, fomos todos para o “nosso” lote e o cercamos e colocamos uma placa – Associação de Ostomizados de Goiás.
Espetáculo majestoso e inesquecível, pacientes com as enxadas, enxadões nas mãos (alguns deles já envelhecidos e com limitação física provocada pela doença que os acometiam). Preciso realçar a figura de um homem extraordinário, o saudoso sr. Emy Borges Soares que, apesar de apresentar séria limitação em um dos braços, não arredou um minuto da labuta; por oportuno preciso lembrar que, naquela época da “invasão”, o sr. Emy era o presidente da Associação.
A partir de então, o lote era nosso de fato! Se quisessem expulsar-nos que arcassem com o inevitável desgaste político, pois estávamos resolvidos, se isto acontecesse, que iríamos (pacientes e equipe multiprofissional) nos colocar de mãos dadas, em frente da cerca.
Felizmente nunca nos molestaram e, finalmente, na gestão do dr. Nion conseguimos a documentação, o lote era nosso de direito!
Precisávamos construir a sede, iniciamos então uma campanha de arrecadação de fundos e para este desiderato contamos com a ajuda da Loja Maçônica Asilo da Acácia e, principalmente, de alguns de meus clientes. Um deles, o saudoso amigo Jairo Andrade promoveu alguns leilões de gado com renda para a Associação, quando, então, íamos para a porta da entrada do “Tatersal” da Pecuária, vender os ingressos. Marilia era a mais animada nesta tarefa. Conseguimos construir a sede!
A nossa movimentação na sede aumentou de maneira assustadora, chegamos, na fase áurea da associação a termos mais de 300 associados; nossa “fábrica”, à medida que adquiríamos maior “expertise”, passou a produzir as bolsas em escala de produção – um paciente (associado) cortava o plástico, outro furava o orifício que seria aderido ao abdome, outro passava a cola e assim por diante até o último que o encaixotava.
Foi nesta época que o dr. Arturo Mayorga, professor da Faculdade, procurou-nos para ajudá-lo a resolver o problema do seu sogro, portador de uma ostomia e que morava na Bolívia, onde a situação social era ainda mais grave. Este senhor esteve em nossa associação e levou a ideia da nossa “fábrica de bolsas” para sua terra; visitei-o em uma oportunidade, quando verifiquei, com satisfação, que nosso projeto ultrapassou as nossas fronteiras.
Em 1991, Marilia teve a ideia de publicar um “jornal” da Associação, cujo título era bem sugestivo – O Canguru (alusão ao fato deste animal possuir uma bolsa), circulava com notícias dos associados, nossas festas de aniversários, poesias, crônicas, além de matérias produzidas pela equipe multiprofissional, sobre “cuidados com a ostomia”.
Depois de construída a sede, iniciamos nova batalha: muitos pacientes vinham do interior para se tratar aqui em Goiânia e não tinham onde se hospedar, enquanto aguardavam a consulta. Conseguimos com a Prefeitura de Aparecida de Goiânia, um lote onde pretendíamos construir um albergue; meu amigo Jair Peixoto (antigo proprietário da Casa Rural) veio em meu socorro.
Jair era o homem certo, uma vez que ele dedicava sua vida para ajudar ao próximo, arrecadando dinheiro com seus clientes e amigos fazendeiros; Jair abraçou o nosso projeto e “mandou” que sua filha, a arquiteta dra. Elaine, fizesse a planta e, utilizando a mesma tática, ele de um lado e eu de outro (pedir, pedir, pedir), construímos o albergue.
A causa é boa, dizia ele em momentos de desânimo, vamos em frente que iremos conseguir!
Quando olho para trás, tenho a sensação de que tudo o que fizemos valeu a pena, muitos daqueles companheiros da primeira hora, ficaram na beira da estrada da vida. Sei que, onde eles estiverem, devem estar satisfeitos pelo rastro de luz que deixaram para iluminar nossa caminhada.
(Hélio Moreira, membro da Academia Goiana de Letras, Academia Goiana de Medicina, Instituto Histórico e Geográfico de Goiás)
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