Consequências para a sociedade da “abolição” dos diplomas médicos
Diário da Manhã
Publicado em 26 de fevereiro de 2016 às 01:43 | Atualizado há 9 anosDiplomas médicos e títulos médicos já não são necessários no Brasil, vou mostrar abaixo o porquê. Governos, entidades médicas, já “aboliram” sua utilidade e , de agora em diante, quem vai regular isso é o Mercado. Portanto, médicos jovens, futuros médicos, prepare-se bem para sua carreira, com uma boa formação no Mercado, esqueça os papéis.
Já estamos em processo, inicial, mas irreversível, de “regulação da Medicina pelo Mercado”. Vou dar alguns exemplos: conheço médicos que atendem psiquiatria, sem serem psiquiatras, sem terem feito curso de residência médica oficial. Estes que cito fizeram formação hospitalar pesada, portanto têm formação, mas “ditada pelo Mercado”, não pelos órgãos reguladores. Fizeram isso porque, de certa forma, foram “rejeitados” pelos critérios de “especialista” das entidades médicas, governo (inclusive porque para cada vaga oferecida há aproximadamente 20 candidatos), mas que são muitíssimo competentes, e estão com agenda lotada.
Como no filme Jurassic Park, “a natureza sempre arruma um jeito de vencer o homem”, ou seja, estamos numa época em que o “diploma já está valendo muito pouco mesmo”, o que está valendo é o resultado. E o resultado, em Medicina, é diagnóstico e tratamento.
Vou, inclusive, aqui, dizer uma heresia. Só exijo que o estagiário hospitalar de nosso hospital seja médico por que ele precisa mesmo ter formação médica para dar conta do recado no hospital (senão morre gente), eu não tenho como ensinar histologia, anatomia, farmaco, semiologia, clínica, etc. Não é por causa de papel, inclusive porque já aceitei e continuo aceitando alunos formados nas “piores faculdades de medicina do Brasil”, gente que não conseguiu passar em residência de psiquiatria nenhuma, não achou vaga.
Como chegamos ao descrédito dos “títulos”? Simplesmente porque quem deveria cuidar deles, o governo, as entidades, associações de especialidade, utilizaram-se deste poder para outros fins. p.ex., o governo usa do controle que tem sobre a residência médica para fornecer mão-de-obra farta para o SUS, o governo rasgou os diplomas médicos (aceitando cubanos sem diploma, vetando a regulamentação da profissão médica, etc) para deixar não médicos fazerem serviços médicos no SUS, etc.
Associações/entidades médicas, muitas, usaram de sua capacidade de “abrir ou negar diplomas, títulos, especializações, etc” para os apadrinhados, grupos de interesse político, financeiro, poder médico, círculo de amigos, etc (“aos inimigos, a Lei”). Algumas associações inclusive “facilitam” que se passe em título de especialista porque isto é a maior fonte de renda da associação. E assim vai a lambança. Resultado: descrédito do diploma médico em si. Resultado: quem vai regular, de agora em diante, é, cada vez mais, o mercado: “O cara é bom ou não é?”, “resolve ou não”? Nós brasileiros, continuamos muito vinculados a “papel” porque, como somos chupins do Estado, o Estado sempre nos exige papel para trabalharmos. Mas isto também está acabando, pois o Estado está enfraquecendo, pagando mal, sumindo com postos de trabalho, aceitando que não-médicos façam trabalho médico. E está-se vendo, como eu disse acima, que o próprio Estado está destruindo esta “necessidade-do-papel-para-trabalhar-como-médico-e-como-especialista”.
É claro que, com o fim da necessidade do diploma médico, muita gente vai morrer, o povo brasileiro é ignorante, não sabe o que acontece, e é muito passivo. Com o “fim das exigências de diplomas”, muitos gaiatos irão se dizer “médicos” para ganhar dinheiro ou mesmo para alimentar uma psicopatologia de poder (“salvar vidas”, “poder sobre a vida e a morte”, “subjugar”, “ver mulher pelada”, e por aí vão os absurdos). No entanto, a abolição do diploma, títulos, etc, já está acontecendo, nós é que não queremos ver. Neste exato momento, por ex., estou diante de uma garota de 16 anos, com HIV, prostituta, moradora de rua, crack, alcool, maconha, tabagismo, sífilis, grávida pela segunda vez, cuja mãe a está levando em autoridades, conselhos tutelares, juizados, promotores da infância, promotorias, etc, desde os sete anos de idade, mas nunca foi a um médico especialista, psiquiatra, só para profissionais de saúde do SUS, não-médicos, que dizem pérolas do tipo: “Ela não tem nada”, “precisa de amor”, “o problema está com vocês”, “vocês é que precisam mudar”, “estão caçando doença para ela”, “drogas é problema social”, e por aí vai. Tem uma hiperatividade/bipolaridade/condutopatia nunca vista ou tratada por médico. Agora, é claro, é tarde, o caldo entornou, não há praticamente nada para fazer. E não acontece nem vai acontecer nada no sistema (alguém, alguma autoridade, algum profissional, algum governo, processado, julgado, indenizado, por exercício ilegal da Medicina, da psiquiatria, etc), pois a sociedade já se organizou assim, ninguém é “culpado”, ninguém nem sabe que existe culpa, ninguém se sente culpado, não há sensibilização por culpa, neste tipo de situação… A família nem sabe que foi “lesada”, nem “quer mexer com isso” (como todo brasileiro), e se der entrada em alguma papelada, os profissionais de saúde não médicos podem alegar que, entre outras coisas, desde 1996, seu conselho profissional federal os autoriza a emitirem diagnosticos médicos, inclusive citando o Código Internacional de Doenças, uma “lei” que nunca foi questionada juridicamente pelos médicos (vejam a bagunça da coisa), portanto eles têm “direito adquirido”. Enfim, como eu queria demonstrar, já estamos em plena abolição da regulação de títulos médicos, o que vale, como se vê é o resultado que o “mercado” oferece. Prepare-se para o mercado e não para o papel.
(Marcelo Caixeta, médico psiquiatra)
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