Opinião

Demagogia política, insegurança social e a onerosa e danosa mercantilização do medo

Diário da Manhã

Publicado em 23 de fevereiro de 2016 às 23:39 | Atualizado há 9 anos

A insegurança que tanto atormenta a sociedade tornou-se em um dos crônicos problemas que fazem a população perder as esperanças de algum dia ter a dádiva de poder viver dignamente, sem sobressaltos e invadida, real e psicologicamente, pela constante presença do medo. Valores supremos e intransigíveis, como a vida humana, passam a ser relativizados, através de uma lógica perversa, de uma sociedade sordidamente estratificada, que elege, seletiva e estigmatizantemente, cidadãos de “primeira”, de “segunda” ou de “última” classe. Aliás, para designar pessoas das classes sociais mais pobres e etiquetadamente criminalizados, o termo “cidadão” é utilizado como ironia ou chacota.

Partindo desse consectário, e em consonância com a hipocrisia prevalente nos estratos sociais e, convenientemente, estimulada por uma corrente ideológica predominante nas instituições estatais, com maior relevo as de repressão penal, as vidas dos cidadãos são classificadas entre as que têm valor social e as que nada valem, justificando, por isso, a indiferença social cultivada e assimilada no ideário popular. Por esta razão, foi preciso que as consequências do descaso com a segurança pública, consequência de uma deplorável desestrutura social, alcançasse os agentes dos órgãos de repressão e os chamados “doutores”, “excelências” ou filhos daqueles ou daquelas pessoas “ilustres”, para que vozes da ignorância e dos representantes do retrocesso verborragiassem que “a violência atingiu níveis insuportáveis e que, por isso, exige-se uma resposta rigorosa”. Não é preciso ter o dom de vaticinar para entender que por “resposta rigorosa” dos agentes públicos entende-se mais arbitrariedades, mais limitação dos direitos e garantias individuais, mais desrespeito ao devido processo legal, ao princípio da presunção de inocência, mais violação dos Direitos Humanos, sob o nefasto pretexto de “coibir a prática delitiva, acabar com a sensação de impunidade e passar à sociedade a sensação de segurança”. Demagogias esdrúxulas tão frequentemente utilizadas por verdugos promotores e juízes, portadores de mentalidades mumificadas e aprisionadas em sarcófagos de épocas prístinas, nos primórdios da origem da espécie humana.

A Ordem dos Advogados do Brasil em Goiás – OAB-GO, através das Comissão de Direitos Humanos – CDH, promoveu uma audiência pública para ouvir a classe política, governo e representantes das forças de segurança pública, com a finalidade de debater e colher sugestões que pudessem contribuir para com a melhora da segurança pública. Nem o governo estadual nem a cúpula da Segurança Pública estiveram presentes. Compareceram alguns oficiais da polícia militar e delegados da polícia civil, representando a diretoria. Os demais policiais, tanto civis quanto militares, representavam suas respectivas associações. A audiência pública demonstrou apenas que quem está de verdade preocupado com a violência e a criminalidade é, tão-somente, o simples cidadão. São as pessoas simples da sociedade, aquelas que pagam pesados impostos sem retorno em forma de políticas públicas efetivas, as que sofrem e as únicas que esperam, ansiosamente, por medidas urgentes e eficazes que possam trazer-lhes a paz que esperam. Todavia, durante toda a audiência o que se viu foi uma sequência de reivindicações intermináveis visando apenas aos interesses pessoais e corporativos. De todas as lamúrias apresentadas pelos policiais, civis e militares, nenhuma apresentava preocupação com o sempre crescente índice da criminalidade e da violência em nosso Estado. Em nenhum momento algum policial demonstrou preocupação com a sociedade. Nenhum dos presentes, desde o soldado raso até o oficial de maior patente, desde o agente de polícia civil ao delegado de maior posicionamento hierárquico, foi capaz de apresentar um projeto, uma ideia, um programa que pudesse contribuir para resolver ou amenizar a dantesca situação da insegurança pública que tanto atemoriza a população.

As reivindicações e queixas dos representantes das polícias não se limitaram às questões financeiras e privilégios de cunho meramente pessoal e corporativo. Foram tanto mais além que ultrapassaram a fronteira da racionalidade humana. Alegaram que a culpa do alto índice de violência é o “excesso de garantias” do preso. Essa declaração, estúpida pela sua natureza e origem, talvez tenha sido inspirada ou plagiada em outro exemplar da espécie, quando, sabe-se lá quem, utilizando-se da mesma estultice para atribuir às audiências de custódia a culpa pela violência e a “sensação de impunidade”. Declarações assim ou são eivadas de proposital maldade ou são frutos de vetusta ignorância. Talvez sejam uma tentativa de se içar à visibilidade midiática uma patética pessoa que está menos para a importância do cargo que ocupa e mais para dançarina de baile funk. Acredita-se que essa mentalidade só continua existindo porque no Brasil não se manda para a prisão juízes negligentes e violadores das liberdades e da dignidade na pessoa humana. As audiências de custódia nada têm a ver com o alto índice de violência. Elas não existem para pôr o preso em liberdade, mas apenas para que o juiz tenha diante de si a pessoa que ele vai decidir se a prisão se justifica ou não. O juiz apenas decidirá se o acusado ou suspeito que se encontra preso tem direito ou não de aguardar o julgamento do processo em liberdade e se foi vítima de violência policial, principalmente tortura. As audiências de custódia foram instituídas em Goiânia após a realização de audiência pública onde foram ouvidos diversos segmentos da sociedade civil, representantes do Judiciário e das polícias civil e militar. Trata-se de um paradoxo absurdo alguns policiais se manifestarem contra as audiências de custódia, haja vista que essa era uma de suas reivindicações até há pouco tempo, alegando que sem elas os presos lotavam as celas das delegacias de polícia e os policiais, que deveriam estar nas ruas investigando e combatendo o crime, eram obrigados a ficarem nas delegacias “vigiando presos”.

A alegação de que a violência cresce porque no Brasil a legislação é “leniente” com o criminoso é, igualmente, de uma insensatez tão absurda que nem mereceria consideração. Entretanto, para os menos avisados, alguns esclarecimentos se fazem necessários. Primeiro, é preciso que se diga, o discurso de culpar a legislação brasileira como uma das grandes causas da “impunidade” e do aumento da criminalidade, não passa de uma falácia caduca, repetida há décadas e, portanto, anacrônica. Com base nessas alegações a legislação penal brasileira, como consequência de um legislativo midiático, sempre pronto para fazer do processo legislativo um ato circense para ludibriar a opinião pública, começou a passar por sucessivos agravamentos repressivos desde a segunda metade da década de 1980. De lá para cá, o rigor na repressão penal nunca deixou de crescer, acarretando, na mesma proporção, a diminuição das garantias fundamentais dos cidadãos, cada vez mais diminuídos diante da sanha repressiva. A partir daquele período, cedendo às retóricas dos agentes da repressão (Ministério Público, polícia, Judiciário), a demagogia política produziu muitas bestialidades epitetadas de “reformas” visando ao agravamento e severidade na repressão penal, como a lei que pune os crimes contra o sistema financeiro, lei de crimes hediondos (surgido em 1990 mas, constantemente, abrigando novas condutas), lei que garante a infiltração de agentes de polícia em organizações criminosas, lei de criação do Coaf (Conselho de Controle de Atividade Financeira), lei de quebra de sigilo fiscal, bancário e de interceptação telefônica, lei dos crimes de colarinho branco, lei do desarmamento (tornando rigorosa a punição para porte ilegal de arma de foto), lei que pune com maior rigor a embriaguez ao volante, lei de crimes cibernéticos, Lei Maria da Penha, Estatuto do Idoso, feminicídio e outras aberrações legislativas, além de diversos tratados de cooperação internacional em matéria policial e judicial. Acrescente-se a tudo isso as leis que têm aumentado o tempo de permanência na prisão, através de mudanças no regime de progressão de pena na Lei de Execução Penal. Ou seja, o discurso de culpar a falta de leis mais rigorosas pelos altos índices de criminalidade soa como ridículo. Os órgãos repressores querem instituir uma pseudo sensação de segurança às custas da supressão das garantias e liberdades civis. Isso é, parafraseando a música, uma paz sem voz. E paz sem voz não é paz, é medo. É óbvio que houve um aumento vertiginoso da população carcerária. De igual maneira, houve o aumento e o recrudescimento da violência. O rigorismo na repressão penal, com o agravamento das penas e o aumento de prisão e o tempo de encarceramento, não produziu nenhum resultado concernente à redução da criminalidade. Ao contrário. Houve um grave paradoxo: enquanto os órgãos da repressão estatal continuam enganando a população sobre a necessidade de elaborar-se mais leis penais mais rigorosas, a construção de mais presídios e de reduzir as garantias dos cidadãos, o Judiciário, o Ministério Público e as polícias não conseguem sequer imaginar o que fazer com os presos que já existem. Além de não ter surtido efeito algum na redução da criminalidade, essas instituições veem eclodir a violência de dentro dos presídios, os quais são transformados em fortalezas de escritórios do crime, de onde saem as ordens para a prática da grande maioria das ações criminosas que tanto amedrontam e vitimizam a população. Exemplo disso são as facções criminosas que tomaram conta dos presídios e, de dentro deles, controlam não apenas o crime que ocorre do lado de fora, como também controlam os próprios presídios. Isso sem computar nas estatísticas sobre a criminalidade e a violência os desrespeitos aos direitos humanos praticados pelos agentes do Estado contra os presos indefesos e toda uma cadeia de crimes que ocorrem entre os presos, como tráfico de drogas, extorsão, violência sexual, torturas, homicídios. Essa violência o Estado tenta tirar da visibilidade social e midiática. Entretanto, ela também está presente e atuante, afetando diretamente a população. A diferença é que esta modalidade criminosa conta com todo o aparato da estrutura estatal a dar-lhe proteção.

Por outro lado, também não se sustenta o discurso da falta de recursos financeiros. A segurança custa muito caro a nós, contribuintes. Se o dinheiro é gasto inutilmente, por tecnocratas perdulários e ociosos essa é outra questão. Se toda uma fortuna é torrada para financiar a incompetência e a ineficiência, essa também é outra questão. Mas, o dinheiro tem, e é gasto. Os resultados esperados, esses sim, nunca vêm, nunca aparecem. Apenas com curso de aperfeiçoamento e qualificação profissional o contribuinte pagou para as polícias em Goiás o valor de 5 milhões e 800 mil reais. Entre os anos de 2013 e 2014 o investimento na Segurança Pública em Goiás foi de 42%. Entretanto, no mesmo período, aumentou de 44,8% para 46,6% a taxa de homicídios apenas na capital, Goiânia, segundo dados do 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Somente para a Segurança Pública em Goiás, no ano de 2014, foram investidos 2,1 bilhões de reais, entre verbas estadual e federal. No ano de 2015 foram investidos mais de 2 bilhões e 700 milhões de reais, o equivalente a 12,5% da receita corrente líquida do Estado. Esse percentual supera o investimento na Saúde onde foram aplicados, em 2015, 12,2% da receita corrente líquida. Recentemente, o Estado entregou a Escola Superior da Polícia Civil, considerada a mais moderna do Brasil. Ao que tudo indica, décadas de investimentos, bilhões e bilhões gastos, produziram apenas um denominado “Setor de Inteligência” onde os policiais só conseguiram aprender a fazer escuta telefônica. Além de tudo isso, policiais são enviados a outros países para intercâmbio em cursos de aperfeiçoamento, tudo pago pelos contribuintes. Recentemente, um grupo de uns 10 ou 15 delegados de polícia civil viajou à Londres, na Inglaterra e, de lá, a Paris, França, para fazer aperfeiçoamento e estudaram novas técnicas de investigação. Tudo bancado pelos cidadãos contribuintes. Esses mesmos que questionam a finalidade de tamanha onerosidade, sabedores que são de que, em Goiás, menos de 10% dos homicídios são esclarecidos, com a identificação do autor e a sua prisão, de acordo com o Mapa da Violência de 2011, divulgado pelo Ministério da Justiça.

A verdade é que a violência e a criminalidade são muito lucrativas. Tem muita gente ganhando com a insegurança e o medo sofridos pela população. Além dos bilhões gastos inutilmente, dos quais uma significativa parcela escorre pelo ralo da corrupção, da negligência e da indolência, existem aqueles que se sustentam utilizando-se do discurso da insegurança como plataforma eleitoral. A violência e a criminalidade, portanto, funcionam como o azeitamento que faz movimentar as engrenagens de uma estrutura sórdida, de uma sociedade hipócrita e de políticos demagogos e sádicos, que se elegem e se mantém no poder explorando e se beneficiando do discurso da violência. Não por acaso, o Estado de Goiás é fértil em eleger policiais, a chamada “bancada da bala”, tanto para o Legislativo estadual quando ao federal, parlamentares que são beneficiários diretos desse caos útil, mas que suas eleições não contribuíram em nada para reduzir os alarmantes índices da violência. Por sua vez, os agentes das policias civil e militar praticam muito bem o que eles chamam no jargão policial de “gerenciamento de crise”. Nisso consiste valer-se ao máximo do abalo e do pavor ocasionados pela insegurança para administrarem essa realidade canalizando-a para a defesa de seus interesses, pessoais e corporativistas. E não estão satisfeitos em serem apenas incompetentes e oportunistas. Desejam a total supressão dos já quase inexistentes direitos e garantias das liberdades civis. Para tanto, contam com o apoio e a militância ostensiva e deplorável daqueles que deveriam representar o último bastião de refúgio e alento de tantos cidadãos desesperançados: alguns obtusos juízes de direito. Ao que parece, a única paz que nos resta é mesmo a paz dos cemitérios.

 

(Manoel L. Bezerra Rocha, advogado criminalista – [email protected])

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