Dr. José Normanha de Oliveira, o médico, o filósofo e, sobretudo, o escritor
Diário da Manhã
Publicado em 22 de março de 2016 às 22:50 | Atualizado há 9 anosDr. José Normanha, como vimos no texto publicado na semana passada, formou-se em medicina (Belo Horizonte) em 1945 e após clinicar pelo interior da Bahia (mais de três anos) e em uma mina de diamantes em Coromandel, no Triângulo mineiro (um ano) foi-lhe sugerido, por um propagandista de laboratório farmacêutico, vir para a recém fundada cidade de Goiânia.
Dr. José Normanha veio para Goiânia no inicio do ano de 1949, naquela época com uma população estimada em 50.000 habitantes e pouco mais de 20 médicos, dentre eles destacam-se os pioneiros Altamiro de Moura Pacheco, José Fleury, Domingos Vigiano, Eduardo Jacobson, Sebastião de Faria, Waldemiro Cruz, Clovis Figueiredo, José Sócrates, Bruno de Oliveira Torres, Simão Carneiro de Mendonça, Aristoclides Teixeira, Newton Wiederhecker.
Alguns dias depois da sua chegada, encontrou-se com o dr. Aristoclides Teixeira, médico já conceituado na cidade e seu “veterano” na Faculdade em Belo Horizonte e este o apresentou ao dr. Eduardo Jacobson, na época construindo o Hospital Santa Luíza, na esquina da Avenida Goiás com a Av. Paranaíba. Este encontro selou uma amizade que duraria por toda a vida dos dois.
Dr. Eduardo Jacobson o aconselhou a fazer um curso de especialização e sugeriu-lhe a radiologia, tendo em vista que Goiânia estava carente de profissionais nessa área; Eduardo foi mais além, indicou-lhe que procurasse o dr. Javert em Belo Horizonte (onde Normanha estagiou por dois meses), o dr. Caminha no Rio de Janeiro (quatro meses) e o dr. Fernando Chamas em São Paulo (três meses) e só depois voltasse para Goiânia.
Após a conclusão dos cursos e sentido-se apto para exercer a especialidade voltou para Goiânia e o seu já amigo dr. Eduardo Jacobson o apresentou a vários outros colegas, dentre eles o drs. Simão Carneiro de Mendonça, Bruno de Oliveira Torres e Sebastião Faria. Todos eles se tornaram seus grandes amigos.
No mês de setembro de 1950, dr. Normanha volta a Belo Horizonte para cumprir seu juramento de amor com a jovem Bernadete de Lourdes Martins. Casaram-se no dia 28 e em seguida ela o acompanha na nova aventura profissional, estabelecendo-se, definitivamente, em Goiânia. Nova vida, novo recomeço! Existiam dúvidas? É normal que existissem, afinal vieram os dois para um mundo desconhecido, deixando suas famílias para trás.
À medida que o tempo passava, dr. José Normanha e dona Bernadete iam entrosando, cada vez mais, com a sociedade goianiense, conhecendo novas pessoas, fazendo novas amizades, enfim, participando da vida social da “sua nova cidade”; foi durante esta fase que o casal conheceu outros médicos (dr. Waldomiro Cruz, José Camilo de Oliveira, Simão Carneiro de Mendonça, dentre outros), com os quais o casal costumava se reunir com alguma frequência, com visitas mútuas às suas casas.
Os dois participaram, de alguma maneira, do progresso vertiginoso da cidade de Goiânia, haja vista a evolução da sua população, que era de 50.000 habitantes em 1950 (quando os dois aqui chegaram), passando para 150.000 em 1960, 380.000 em 1970, 720.000 em 1980.
Não faz muito tempo li no “Jornal Opção”, de Goiânia (janeiro 2012), um texto, “Goiânia nos tempos da Inocência”, da lavra do dr. Irapuan Costa Júnior, onde aquele meu amigo faz uma descrição poética da Goiânia “daqueles tempos”.
Leiam alguns excertos daquela crônica:
“…Teria Goiânia em 1950 mais de 50 mil habitantes, população máxima para que fora projetada? Certamente não. Meia dúzia de ruas, se tanto, tinham asfalto. As abundantes chuvas de fim e começo de ano deixavam enormes poças pela cidade que iam minguando quando vinham os veranicos ou as estiagens […].
[…] Tipos estranhos de rua havia muitos, e os garotos de minha geração hão de prestar contas no Juízo Final por tê-los azucrinado: A Mulher-da-Arara, que perambulava pela cidade levando na cabeça uma trouxa e sobre ela uma enorme arara-canindé – mansíssima, conversadeira – e, de lado, um cão vira-lata que confraternizava com a arara sempre que a trinca parava, por um motivo qualquer. Cão e pássaro nunca se estranhavam, e brincavam um com o outro […]
[…] Havia o Baianinho, calvo, baixinho, que falava sem parar coisas sem nexo, mas de quem era preciso guardar prudente distância. Provocado, era certeiro no arremesso de pedregulhos que abundavam no cascalho das ruas e avenidas. Muitos de nós pagamos o desaforo de gritar pelo Baianinho com uma dolorosa pedrada nas costelas […].
[…] Os cines Goiânia, Santa Maria e Casablanca exibiam os filmes de caubói que não podíamos perder (principalmente se o mocinho era o Tom Mix ou Roy Rogers, com seus revólveres que nunca descarregavam) as belas moças da cidade, após as sessões passeavam pelo trecho da Avenida Goiás que vai da Anhanguera até a Rua 3. Elas passeavam e nós, parados, as observávamos, sem troca de palavras. Mas um olhar diferente era o sinal para um começo de namoro […]
Em 1951 nasceu o primeiro filho do casal, João Mauricio, depois veio Leonardo (1952) e finalmente Renata em 1953, completando, portanto, o ciclo familiar
O advogado dr. Léo Barreto, que foi amigo do casal, certa feita me confidenciou que dona Bernadete costumava vestir os irmãos João e Leonardo com trajes iguais, dando a impressão de que eram gêmeos e que ouviu de Dona Bernadete a seguinte confidência: – ela “decidira” que os dois filhos iriam ser médicos e radiologistas; realmente isto aconteceu: os dois formaram-se em medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais em 1974 e 1977, respectivamente e a Dra. Renata formou-se em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, em 1981.
Um ano depois da sua chegada a Goiânia, dr. Normanha já inaugurava o seu moderno “Instituto de Radiologia e Radioterapia”, localizado na Avenida Goiás; era o primeiro serviço de radiologia e radioterapia de Goiânia com sede própria. Foi naquele Instituto que o pioneiro José Normanha realizou o primeiro tratamento de câncer em Goiás, utilizando-se da radioterapia.
Com o tempo o Instituto Goiano de Radiologia passou a ser uma referência, de excelência, para a medicina goiana, além disso o Instituto passou a ser, também, local para encontro com amigos, como aconteceu em 1960, quando um grupo de pessoas suas amigas (Manoel da Cruz Marini, Wilson de Carvalho, os irmãos Hugo e Walter Frota, Manoel dos Reis e Silva, Datis de Lima Oliva, Eurico Godoy, Romeu da Silva Neiva, José Hermano Sobrinho) ali se reuniu para fundarem um novo clube social, o “Country Clube de Goiás”, do qual ele, dr. Normanha, foi o sócio numero 1.
Nesta mesma clínica ocorreram, como se observa nos registros da maçonaria goiana, reuniões de alguns amigos do dr. José Normanha, principalmente médicos, (João de Paula T. Filho, José Camilo de Oliveira, Luiz Rassi e Alberto Rassi) para tratarem da fundação de uma nova Loja maçônica em Goiânia, a Aurora de Goiás, ainda hoje funcionando.
Dr. José Normanha participou ativamente dos trabalhos desta Loja Maçônica, tendo sido eleito para o seu cargo mais importante: Venerável da Loja (presidente) para o período de 1958/1959; quando ele faleceu ostentava o título de “Emérito da Maçonaria Goiana”.
Dr. José Normanha era um homem antenado com as reivindicações da sua classe, foi um dos sócios fundadores da Associação Médica de Goiás, tendo exercido o cargo de 1º Secretário da sua primeira diretoria; foi, também, um dos fundadores do Conselho Regional de Medicina do Estado de Goiás (1959), exerceu a 2ª secretaria da sua 1ª diretoria e, posteriormente, foi conselheiro daquela entidade, cargo que ocupou por muitos anos.
A partir da década de 1960, o dr. José Normanha passou a ser conhecido e, principalmente respeitado, não somente pela sua “expertise” na sua especialidade médica (radiologia) mas, também, pela sua fama de homem culto, estilista da linguagem, pensador com grande conhecimento da filosofia e da literatura, como escritor e poeta.
Tornou-se membro da Academia Goiana de Letras (1987), sócio titular da União Brasileira de Escritores – Seção de Goiás, foi um dos fundadores da Academia Goiana de Medicina (1988), tendo sido o Tesoureiro da sua primeira diretoria, sócio honorário do Instituto Mineiro de História, membro titular-fundador da Academia
Brasileira de Médicos Escritores (cadeira 45), membro correspondente da Academia Mineira de Medicina, membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (Sobrames), e membro titular-fundador da Academia Goiana Maçônica de Letras.
Naquela fase cultural tão importante da sua vida, outro acontecimento ligado a esta área iria, também, trazer-lhe grande motivação literária, seu amigo José Mendonça Teles convida-o para se ligar ao Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, na qualidade de membro titular.
Foi em uma das reuniões rotineiras do instituto que o destino marcou o encontro entre duas almas gêmeas da filosofia em Goiás: dr. Normanha conheceu o prof. Isócrates de Oliveira; sua admiração pelo seu novo parceiro de pensamento filosófico foi num crescendo à medida que os encontros e a correspondência epistolar entre os dois ficavam mais amiúde, haja vista a homenagem que ele, dr. José Normanha, lhe prestou em 2003 (quatro anos após a sua morte) ao publicar o livro “O Pensamento Livre de Isócrates de Oliveira, pela A B Editora, Goiânia, 2003”.
Infelizmente nunca discuti assuntos filosóficos com o dr. José Normanha, mesmo porque nunca tive oportunidade de me aproximar um pouco mais da sua intimidade cotidiana, porém, vez por outra, costumávamos conversar, no início, muito sobre medicina e paulatinamente, à medida que aumentava nossa convivência cultural, este assunto passou a predominar nas nossas conversações.
Dr. Normanha não percebia o quanto ele, mesmo à distância, me ensinava e obrigava-me a ler cada vez mais, adquirir mais livros, sobre todos os assuntos, se quisesse acompanhá-lo nas nossas eventuais, infelizmente, poucas discussões culturais. Em um dos nossos encontros, lembro-me bem, dr. Normanha fez alguns comentários sobre “A Divina Comédia”, sob o olhar mítico-religioso-filosófico e observou que Dante, ao escrever o mais pesado libelo contra o egoísmo, a falsidade,a hipocrisia e a maldade humana, dissecou, de maneira genial e objetiva, a alma da humanidade.
Um dos locais que o encontrava, com alguma frequência, era no Country Clube de Goiás, sempre debaixo de um guarda-sol, ao redor da piscina; aproximava-me e sempre tínhamos assuntos a discutir: era um comentário sobre um dos seus livros, era sobre as crônicas que eu escrevia para a revista do Clube e, também, sobre a Arte Real (maçonaria), enfim, tertúlias culturais. Sentíamos satisfação com esses encontros!
Provavelmente, na sua busca da verdade, ele encontrou, um dia, o Grande Arquiteto do Universo e escreveu (Poeira do Tempo, A B Editora, Goiânia, 2005):
“Creio que o grande destino do homem não é apenas caminhar olhando o chão, à cata do ouro, mas olhar acima dos horizontes, para buscar as estrelas, a Luz Maior.”
Conjugando a sua fé no criador com o pragmatismo da filosofia maçônica ele escreveu o belo poema – Presença de Deus – do qual transcrevo alguns versos:
Sei que sou vida, seiva e pó das eras,
Da essência da árvore também surgi,
Mas, sempre existe em mim o eterno enigma,
Quando pergunto ao Ser porque nasci…
Se me veio a existência consentida,
Qual poder ou mistério transformou
O germe, o pó da folha ressequida,
Num ser que pensa, que ama e sofre a dor?!
A partir dos anos de 1990, o dr. José Normanha diminuiu bastante suas atividades profissionais na medicina; daí em diante passou a se dedicar, com mais tempo, à literatura, especialmente à filosofia; segundo nos conta a drª Renata, ele passava horas e horas “escondido” na sua biblioteca, diga-se de passagem, uma “senhora biblioteca” (estive ali algumas vezes), sozinho, conversando com seus interlocutores preferidos (Sócrates, Platão, Isócrates de Oliveira, Heidegger, Kant e muitos outros).
Foi a partir dessa época que ele passou a publicar seus livros (total de 15). No dia 21 de abril de 2006, quando ele completou 90 anos de idade, a família fez-lhe uma aconchegante festa, e para aquela oportunidade ele escreveu (como sempre, foi formal) e pronunciou seu último discurso.
Nesse mesmo ano a Assembleia Legislativa do Estado de Goiás outorgou-lhe o Título de Cidadão Goiano, ratificando, historicamente, o título de “Mérito de Goianidade” que a Associação Goiana de Imprensa, já havia lhe outorgado em 2001.
O dia 5 de setembro de 2006 foi um dia difícil e de luto, não só para a comunidade médica, como também para a cultural e filosófica de Goiânia: dr. José Normanha faleceu.
Seu enterro ocorreu no Cemitério Jardim das Palmeiras; fui um dos primeiros a chegar ao seu velório. Chamava a atenção o seu semblante sereno e, sobretudo, elegante, estirado no caixão que o levaria para o Oriente Eterno; não passou despercebido que ele usava alguns paramentos da maçonaria (segundo o Leonardo, seu filho, foi um dos pedidos que ele lhe fizera no leito de morte).
Ao seu lado dona Bernadete, companheira de uma vida, com o rosto molhado de lágrimas, parecia não acreditar na fatalidade; seus filhos João e Leonardo, sua filha Renata, emocionados, porém serenos, como soe acontecer nestas oportunidades com os descendentes de um homem de espírito claro e nobre coração.
Goiânia, naquele dia, perdia uma das suas maiores expressões do mundo filosófico, a classe médica ficou órfã, a Academia Goiana de Letras ficou sem um dos seus mais importantes quadros.
Convivi o que pude com o dr. José Normanha, infelizmente nossas vidas de médicos não permitiram que tivéssemos um contubérnio mais estreito, como gostaríamos, no entanto, hauri o máximo que pude dos seus ensinamentos e tenho procurado transmitir aos meus filhos e netos a lição de vida que ele deixou-me como depositário.
Certa feita repeti para ele o que aprendi com nosso irmão da Arte Real, o imortal Goethe:
“Os últimos companheiros de uma longa jornada têm mais coisas a dizer um ao outro.”
Nós Fizemos Isto!
(Hélio Moreira, membro da Academia Goiana de Letras, Academia Goiana de Medicina, Instituto Histórico e Geográfico de Goiás)
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