E o verbo se fez trabalho – II
Diário da Manhã
Publicado em 22 de fevereiro de 2017 às 02:58 | Atualizado há 8 anos“Os proprietários de mera força de trabalho, os de capital e os de terra, os que têm por fonte receita, respectivamente, salário, lucro e renda fundiária, em suma, os assalariados, os capitalistas e os proprietários de terras, constituem as três grandes classes da sociedade moderna baseada no modo capitalista de produção.” (MARX, O Capital, livro III, cap. LII)
Como toda paz, desde os primórdios, transforma a sociedade pelas vias da guerra, à época da sociedade primitiva os assírios eram reconhecidos caçadores de grandes animais, e, no embalo das ambições, uma das primeiras guerras entre os povos primitivos se dá pelo ataque desses povos a uma tribo vizinha. Armados com armas para matar grandes animais deram largada a descobertas enquanto manancial da morte e devastação, quando o invasor cerca a comunidade e exige, à época, um terço da produção. Quem sabe aí a aparição do imposto. Quando ataca e rouba outro povo, escraviza seus homens em idade produtiva, mata a população, afana o excedente em grãos, dá gênese ao capitalismo, berço da sociedade desigual e violenta que vive da riqueza expropriada no suor do trabalho, engenho da morte ética e moral da (des) humanidade que produz e reproduz a mais-valia extraída do capital.
Na redundância da aplicação diária do extremismo nasce o Estado, forma política da exploração do homem pelo homem. O dono da terra manda numa mulher submissa e secundária, a família monogâmica tem perfil patriarcal, vinculada, é claro, aos moldes da burguesia e à propriedade privada, segundo Nietzsche: “As mulheres foram até agora tratadas pelos homens como pássaros que, descidos de qualquer altura, se perderam entre eles: com alguma coisa de dedicado, de frágil, de selvagem, de estranho, de suave, de encantador – mas também como alguma coisa que é preciso fechar numa gaiola, de medo que voe para longe.” (Além do bem e do mal, p. 157). Enquanto a mulher tem que ser monogâmica, a prostituta é o reconhecimento do machismo, e passa pelo funil da ética podre do sistema, da coleta para a produção forçada, explorada, quando a sociedade dos bons precisava vigiar o escravo. Aumentar o número deles e a extensão da terra era sinônimo de poder e riqueza, status que trazia significado à proposta imposta pelos Estados expansionistas e imperialistas da Babilônia, Egito, Fenícia, Pérsia, Cartago e Roma.
A Idade Média conhece o desenvolvimento da força de trabalho muito grande, nos séculos XII e XIII, há uma crise do sistema feudal a partir do fato de que a produção aumenta e a população dos velhos também, os trabalhadores vivem mais, portanto, há mais trabalhadores do que o sistema do feudo necessita. Neste recorte histórico o excedente da força de trabalho faz surgir o exército de reserva industrial, nasce o escambo, quando a troca precede a invenção do dinheiro, o capital, a acumulação de mercadoria, riquezas de um dono só. O senhor feudal necessita, cada vez mais, de terra e mão de obra disponíveis. Com a burguesia é o contrário, a acumulação é indefinidamente cumulativa, o mercado é decisivo para a intermediação privada, o preço de venda tem que ser maior que o total de custo e a oferta há que ser menor que a procura, caso inverso, a mercadoria perde valor e preço. Nas crises cíclicas do capitalismo, cada vez mais a conjuntura envolve capital maior, quando o grande engole o pequeno.
A partir de 1970, o processo do capitalismo mundializado, não na sétima década do século XX, mas a partir do mercado mesopotâmico – antes do evento carismático da era cristã –, gera miséria, desemprego e crise. Os passos tortuosos da história deixam rastros profundos na sociedade com rusgas do homem primitivo que pariu o escravo e o emancipou à condição de servo, sujeito transformado em ferramenta estrutural do sistema, combustível da burguesia atolada no lucro incessante, montada no cangote do proletariado, atrelado aos grilhões da crise planejada. Esta a tese central da Ontologia de Lukács, segundo o qual “o homem é assim porque se fez assim, pode se refazer, é necessária a reforma pelo comunismo, socialismo”, onde a divisão social do trabalho que levou à burguesia, ou lucro de quem não trabalha, possa beber da proposta da transformação da função social do homem que não é ligada ao trabalho.
Se a sociedade é uma totalidade, então, uma parte depende da outra. Há descaminhos metodológicos, as ciências sociais provam que estes são parte de um todo mais vasto. Antes dos homens da pós-modernidade, as teorias dominantes estabeleciam a realidade emoldurada nas relações sociais dialogadas a partir da cultura e da política, confrontadas pela dialética materialista, a qual critica se essa tese do patrimônio histórico-cultural da (des) humanidade teria se incorporado ao patrimônio de todos, segundo MARX: “A própria burguesia assumindo-a, aliás, coetânea com o crescente ‘materialismo’ da sociedade civil e com a ‘neutralização’ de suas contradições fundamentais. Tudo consistiria então, na maneira pela qual se efetue a análise das relações entre a infraestrutura e a superestrutura” (apud, BRANDÃO, p. 154, 1977).
Essa dinâmica de entendimento sociopolítico da conjuntura do sistema capitalista selvagem exige o “reconhecimento” do materialismo, da tese da determinação econômica enquanto ferramenta institucionalizada pelo “fator econômico’ colocado ao lado de outros ditos igualmente importantes: o político, o ideológico, o psicológico, o tecnológico, dentre outros” (id. p. 155). Para tanto não é de forma alguma absurdo pensar, segundo (SCHWARZ, 1974) que “um homem contrário ao capital possa não ser marxista, que um materialista use esquemas próprios ao idealismo, que alguém convencido da historicidade e da ‘novidade’ do mundo industrial, adote os termos a-históricos da antropologia filosófica” (p. 23-24, Debate e Crítica n. 3, 1974, apud BRANDÃO, p. 154, 1977).
Se existe uma solução dotada de alguma concepção dialética e essencialmente histórica da sociedade e do homem, esta dinâmica engendra a sociologia compreensiva de Weber, “trespassada pela realidade alemã de sua época, o qual, ao rejeitar a Razão dialética, a racionalidade objetiva imanente à história, capitulou diante da barbárie capitalista e acabou prisioneiro do irracionalismo, da aridez formalista e das falsidades do conceito de ‘racionalização’” (NOGUEIRA, p. 152, 1977). Esta discussão, ao contrário de “simples catalogação das aparências empíricas” (CHASIN, 1977, P. 134) deixa a Caixa de Pandora e extrapola o tempo, a construção, também a desconstrução do trabalho enquanto cerne da emancipação ou escravidão do homem moderno o qual, segundo a previsão de MAUSS (1992): “No futuro próximo, estaremos de algum modo presos ao mercado”.
E o pulso, ainda pulsa!
(Antônio Lopes, escritor, filósofo, mestre em Serviço Social, pesquisador em Ciências da Religião/PUC-Goiás; aluno-ouvinte em Direitos Humanos/UFG)
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