Eufemismo inaplicável
Diário da Manhã
Publicado em 18 de março de 2018 às 00:19 | Atualizado há 7 anosEstado democrático de direito. Alguém com bom senso, ao menos, pode me explicar o que as três palavras, assim juntadas, significam? O noticiário impresso, o eletrônico e as redes sociais estão abarrotados de notícias terríveis, redigidas em péssimo estilo, pronunciadas com total ignorância de regras básicas da Língua e até mesmo em frontal menosprezo aos conhecimentos básicos que, até há bem pouco tempo, eram indispensáveis aos que tiveram o privilégio da escolaridade ao menos mediana.
Já nas primeiras horas do dia, uma frase ecoa na rotina: “Mais um policial foi morto…”. Só no Rio de Janeiro, até a sexta-feira, 16 de março, a estatística era de 27, somente neste ano de 2018. A morte de civis inocentes, vítimas de balas perdidas ou alvos de assaltantes, não foi informada.
Na quarta-feira, a maldade foi posta à mesa da Câmara de Vereadores de São Paulo – uma reforma previdenciária para “punir” o funcionalismo municipal da desvairada pauliceia, elevando até a 14% dos salários acima de cinco mil e poucos reais – os mais pobres não seriam poupados, não: para estes, 11% de desconto para a previdência municipal (era 14 de Março, aniversário de Castro Alves e, por isso mesmo, o Dia Nacional da Poesia – o tradicional, pois a presidente Dilma Rousseff instituiu, por ato autocrático, o aniversário de Carlos Drummond de Andrade como mais um Dia Nacional da Poesia, e o “poetariado” nacional acatou, enriquecido com mais uma data festiva).
Os professores municipais da maior cidade brasileira manifestaram-se. E foram “normalmente” reprimidos com porradas e “cassetetadas” pela zelosa Guarda Civil Metropolitana, coadjuvada pela gloriosa e tradicional Força Pública – nome antigo da atual Polícia Militar paulista. Professoras ensanguentadas, professores feridos e “engravatados”, vidraças quebradas e o prefeito Dória, a quem a competente Guarda Metropolitana obedece, cinicamente, discursou a sua não-convincente discordância à violência praticada.
Na quinta-feira, dia 15, juízes federais, com os reforços dos procuradores de justiça também federais, entraram em greve: buscavam pressionar o Supremo Tribunal Federal a manter o antiético Auxílio Moradia. E deram andamento a essa malfadada iniciativa justo no dia seguinte ao assassinato da vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro – o palco “mais glamoroso” para o esporte mais praticado no país, a pistolagem urbana. Covardemente, a moça foi alvejada quatro vezes na cabeça. O objeto que se mostra era o de calar a voz que se erguia contra a discriminação pela cor da pele, pela origem favelada, pela condição feminina… E ainda em defesa dos homossexuais, contra a matança sistemática, pela polícia, de meninos pretos que, por serem pobres e favelados, têm sido alvos das armas oficiais – não bastassem a discriminação, as limitações escolares, o convívio muito próximo com o tráfico de drogas, o contrabando de armas e os conflitos inevitáveis entre policiais e criminosos.
A nação brasileira estarreceu-se ante a violência. O fato atravessou fronteiras e mares, provocou instituições e nações, sacudiu até mesmo o Parlamento Europeu e o Alto Comissariado de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas – mas os juízes realizaram sua greve, sem que nenhuma Polícia Militar ou Guarda Metropolitana espancassem juízes ou lançassem gases contra os procuradores.
A vereadora carioca – jovem e mãe, preta e pós-graduada, política e corajosa – foi velada e sepultada. Muitas vozes se ergueram ante o silêncio que se tentou impor. Eram vozes do protesto lamurioso, da revolta instalada. Eram vozes em poemas e canções, em notas musicais e contextos sociológicos e jurídicos – claramente avisando aos algozes que a voz silenciada foi a da moça guerreira, mas seu pólen espalhou-se por milhares ou milhões de outras pétalas.
Nas redes sociais, o grito e a solidariedade, à causa e à família, aos amigos e à filha da vítima. Mas também textos de ódio e discriminação, por pessoas sem a coragem contagiante da vereadora, pessoas que destilam suas invejas e frustrações, escudando seus argumentos na prosaica forma de serem contra a esquerda a que a moça morta se integrara.
Ridículas reações, estas. A intolerância política, na esquerda e na direita, como na massa trabalhadora e nos portadores do capital, nas religiões e nas torcidas esportivas, essa intolerância é a semente dos ódios, sim. Respeitem-se as ideias contraditórias – desde que sejam mesmo ideias e não somente a repetição enfadonha e burra de lemas abusivos e desgastados.
Então, volto a perguntar: o que vem a ser, dentro da nossa realidade destes dias tristes, esse tal de “estado democrático de direito”? É o direito de matar quem pensa e se pronuncia contrário? É o conforto de xingar “comunista” aos que reclamam seu direito à saúde e à escola? A segurança se estremece quando o aparato policial espanca quem reivindica ou mesmo atira, de tocaia, com armas e munições do patrimônio público ou das sociedades clandestinas da bandidagem para calar desafetos.
E à sombra dessa morte, muitas outras desafiaram o Estado brasileiro, em ameaça ostensiva à Democracia e na indisfarçável intenção de não permitir o exercício pleno do Direito.
(Luiz de Aquino é jornalista e escritor, membro da Academia Goiana de Letras.Feminicídio? Intolerância? – Eis a questão)
]]>