Festa dos passarinhos
Diário da Manhã
Publicado em 27 de dezembro de 2017 às 23:55 | Atualizado há 7 anosQuando reunia os netos na biblioteca da Santa Tereza (o tempo passou e não vi ou, fingi que não vi), colocava-os para ler (tenho muitos livros infantis que naquela época lhes interessavam!); naquele dia, no entanto, resolvi contar-lhes uma história que presenciei e ouvi (naquela época eu já conversava com os passarinhos!). Acreditem, o que vou escrever abaixo não é “doideira do vô”, porém, juro que aconteceu!
Ninguém me contou, eu vi e ouvi com meus próprios olhos e ouvidos:
– Estava sentado a uma cadeira, situada na varanda da casa da fazenda Santa Tereza, perto de uma enorme arvore, aliás, local onde, costumeiramente costumam juntar uma grande quantidade de passarinhos no final das tardes. A razão desta preferência é a localização de um comedouro, com abundância de farelo de milho e outros alimentos da preferência dos pássaros, dependurado em um dos seus galhos.
Dois canarinhos da terra chegaram, parece que até com combinação prévia, quase que ao mesmo tempo; sentaram-se na extremidade de um dos galhos, isolados do restante da passarinhada. Nem bem chegaram iniciaram uma “conversa” que parecia ser a continuação do que vinham discutindo em pleno vôo, pois o que ouvi deu-me este entendimento.
– Você acha que devemos chamar muitos outros colegas ou só vamos nós dois?
– Se vamos chamar, precisamos escolher bem, pois a viagem será muito longa e alguns não agüentarão o “repucho”; neste momento se aproximou um jovem “fogo apagou”, dando demonstração, pela intimidade dos gestos e “palavras”, de que era da turma:
– Onde vocês andavam? Procurei-os ontem por todo lado e não os encontrei; não vão me dizer que estão escondendo alguma coisa boa de mim; por falar nisto, esteve aqui, durante bastante tempo, provavelmente pensando encontrá-lo, aquela canarinha que mora na fazenda do outro lado da represa.
– Como ela estava? Perguntou por mim?
– Você acha que ela iria entregar assim tão fácil? Só disse, olhando para outro lado – onde estão seus amigos? Qual deles, perguntei-lhe; – todos eles, respondeu-me com olhar de enfado.
– Foi bom você chegar, estamos combinando para fazer uma viagem neste final de semana, você topa?
– Depende de que viagem, para quê e principalmente para onde.
Naquelas alturas, vários outros passarinhos, sabiá, pássaro-preto, tiziu, curió, bem te vi, coleirinha, periquito, já estavam participando da reunião, como ouvintes.
– Fiquei sabendo da realização de uma festa lá na fazenda Santo Antonio, perto de Edéia.
– Estou fora, manifestou em primeiro lugar o tiziu; a distância é muito grande e não dou conta de voar para tão longe.
– Se fizermos em dois dias, pernoitando pelo caminho, acho que consigo ir, afirmou o curió, secundado por outros dois ou três companheiros.
– Realmente, o plano é sairmos na quinta-feira, depois do almoço, dormirmos nas imediações de Oloanda; no dia seguinte, viajarmos, sem sufoco, até Pontalina e, na manhã seguinte, antes do sol nascer, “picamos a mula” até alcançarmos alguma mata, já perto da fazenda.
A vantagem deste plano é que chegaremos à festa, bem descansados, inclusive de banho tomado. Dos doze ou quinze passarinhos que estavam reunidos, oito “toparam” a parada de imediato, dois deles, provavelmente os mais novos, condicionaram a uma prévia discussão com os respectivos pais, os demais, ou desistiram ou ficaram de pensar um pouco mais.
– O ultimo dia para decisão é terça-feira, precisamos ter certeza das adesões, para organizar adequadamente o roteiro.
Sem um aparente aviso, de repente voaram quase todos ao mesmo tempo; ficaram para traz os dois canarinhos da terra que haviam iniciado a discussão.- Só irá, quem realmente assumir a necessidade de obedecer a uma chefia, no caso, nós dois, porque o grupo é muito heterogêneo; alguns dos nossos companheiros, ficaram entusiasmados com a possibilidade de fazermos uma boa farra, porém, sabemos que não resistirão a uma viagem tão longa.
– Você tem razão, além disso temos que lembrar de outros, como o curió, que não gosta de obedecer a ninguém. Ele poderá dividir o grupo, insistindo para voar mais rápido, sacrificando alguns.
– Tudo isto será colocado em discussão na terça-feira, vamos aguardar!
Nesta altura tive que interromper a história que estava contando, pois minha netinha Marilia começou a chorar e ao questioná-la sobre a razão do pranto, respondeu-me com a inocência das crianças:
– Eu tinha vontade de, também, conversar com os passarinhos e o senhor não me ensina!
Hoje ela sabe que conversamos com os pássaros por telepatia!
Continuando a história (aliás, atendendo ao apelo dos demais netos), parece que fizeram a programada reunião preparatória em outro sitio, porém, na quinta-feira, mais ou menos às quatro horas da tarde, estavam todos reunidos, naquela mesma árvore, para a partida.
A novidade, para mim, foi a presença de um passarinho vermelho que não havia participado do ultimo encontro, porém, pelo desembaraço com que ele se movimentava e pelas brincadeiras que fazia com vários deles, deu-me a certeza de que já era conhecido da turma há muito tempo
Eram, se não me enganei na contagem, mais de uma dúzia de passarinhos; pela algazarra que faziam, demonstravam enorme contentamento; alguns davam piruetas, outros, como o canarinho da terra e o curió, faziam dueto, misturando as vozes, provocando reações de hilaridade nos demais companheiros.
O “fogo apagou” o mais velho do grupo, era motivo de gozações de alguns dos companheiros: – Será que ele vai encontrar alguma coroa por lá? Acho que ele vai ficar dormindo lá pelas bandas de Pontalina, sem forças para chegar…
Gente, hora de comer alguma coisa para encher o papo, pois a viagem será longa; de imediato todos voaram para os “comedouros” e comeram a “quirera” que havia sido colocada a disposição dos mesmos, graças ao comando que fizera ao jardineiro Elizeu, pois sabia, adrede, que eles iriam fazer a viagem
Alguns minutos após, parece que obedecendo ao comando dos dois “canarinhos da terra”, levantaram vôo; de imediato fizeram uma formação no céu, imitando uma asa delta e para minha surpresa, o passarinho vermelho assumiu a ponta da lança.
Para quem visse aquele espetáculo e não tivesse as informações a respeito, poderia ter ficado surpreso, porém, para mim e para quase uma centena de outros passarinhos, dentre eles vários parentes e principalmente amigos, que vieram para o “bota fora” aquele espetáculo tinha outra conotação.
Ouvi um casal de “canarinhos da terra” já mais idosos, conversando com outro casal de coleirinhas, também já meio chegados na idade:
– Tomara que façam boa viagem, já fomos jovens e tínhamos as mesmas ilusões, não adianta ficarmos preocupados, vamos entregá-los aos cuidados de Deus.
– Ainda bem que levaram o passarinho vermelho, ele é muito experiente e muito sabido, vai ajudar todo mundo, se houver alguma dificuldade.
– A minha única preocupação é a possibilidade de encontrarem um gavião pelo caminho. – Não se preocupe, se isto acontecer, o passarinho vermelho vai achar uma solução, você vai ver. Apesar das palavras serem ditas com muita confiança, percebi que a camarinha mãe estava prestes a chorar!
No começo a viagem estava muito tranquila, o passarinho vermelho dava o ritmo, não deixando que a velocidade aumentasse, apesar da insistência do curió em sentido contrário.
– Não adianta você insistir comigo curió, se forçarmos muito, cansaremos logo e a viagem não renderá; temos um plano para cumprir e não vamos sair dele. Você que é mais esperto e mais ligeiro, volte para o seu lugar lá na extremidade da asa, deixe o centro para os mais fracos, pois aqui, onde colocamos vários companheiros, a pressão do vento é menor e os dianteiros irão provocar quase que um vácuo para os que ficam atrás.
– Ok, vou ficar lá, mas você aumente um pouco o ritmo, se alguém está cansado que fique para trás.
– Só temos força se ficarmos juntos, será que você não entende isto? Ao ver uma formação como a nossa, alguma ave de rapina ficará preocupada em atacar-nos, pensando tratar-se de um único e grande pássaro. Confie em mim que tudo dará certo!
Como foi a festa? Infelizmente não tenho muitas noticias para dar-lhes, pois, para onde eles foram, ninguém conseguia entender o idioma que eles, os passarinhos, falavam.
Novamente minha neta Marilia ainda estava desejosa em aprender a falar com os passarinhos e resolvi ensiná-la em linguagem mais consentânea com a idade dela
Ah! Você quer saber como aprendi a conversar com os passarinhos? Vou lhe ensinar:
– A primeira coisa que você deve fazer, ao chegar à Santa Tereza, é ir para o nosso bosque e sentar-se na poltrona do vô, depois fique em silêncio, procurando ouvir o murmúrio das folhas das árvores e, de repente, você escutará, inicialmente, o gorjeio de um pássaro e depois enxergará algum passarinho que se aproximará de onde você se encontra.
Inicie um diálogo com ele, explique onde você colocou a comida para ele, depois mostre os ninhos que construímos nas árvores, depois, você verá um beija flor, que sem se anunciar, virá sugar a água açucarada que todos os dias colocamos para ele.
Sem você perceber, Marília, você já passará a entender a voz dos pássaros!
(Hélio Moreira, da Academia Goiana de Letras, Academia Goiana de Medicina, Instituto Histórico e Geográfico de Goiás)
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