Fundamentos do cristianismo primitivo e seus antigos redutos
Diário da Manhã
Publicado em 7 de julho de 2016 às 02:31 | Atualizado há 9 anosEmbora já existisse no extremo oriente (Índia-China) uma cultura religiosa de profunda sabedoria milênios antes do nascimento de Jesus, o povo hebreu, tido como o primeiro a professar o monoteísmo, foi quem recebeu inicialmente a mensagem cristã, mas, por estar mergulhado num intransigente fanatismo, não a aceitou em seu conteúdo essencial.
O Divino Mestre, mesmo diante do grande antagonismo, persistia em cuidar primordialmente dos israelitas, deixando para segundo plano outras nacionalidades, os chamados gentios, não obstante ter encontrado entre estes um militar romano que o encantou com enorme demonstração de maturidade espiritual, quando lhe suplicou a cura de um servo seu e, ao se dispor a atendê-lo em sua casa, dele então, com muita surpresa, ouviu o seguinte: não é preciso e nem sou digno de tão honrosa visita, basta dizer ao verbo que meu empregado está enfermo e ele será curado.
Analisando o texto do Evangelho (Mateus, C.8 V.8), Huberto Rohden, um dos maiores pensadores cristãos contemporâneos, falecido em 1981, de quem tive a honra de ser aluno, afirma que o centurião romano não vê o Mestre apenas como o simples Jesus de Nazaré, mas como a encarnação do Cristo de Deus, por isso não lhe pede para proferir alguma palavra em benefício do doente distante, conforme as traduções vulgares, mas para dirigir um apelo ao Verbo divino nele encarnado que, em sua onipresença, curaria o servo, sem precisar de ir à sua residência, como de fato aconteceu.
É que o vocábulo latino Verbo, em grego Logos, se refere ao filho de Deus, o primogênito de todas as criaturas segundo o apóstolo Paulo, a própria razão espiritual, com todo o poder da divindade. Tanto no texto grego do primeiro século, como na tradução para o Latim, está escrito: “Dize ao Verbo”, porque a palavra aparece no caso dativo e não no acusativo (Logo e não Logon, Verbo e não Verbum).
A mensagem primitiva do cristianismo é uma doutrina universal de libertação de consciência que lembra Platão e jamais um tratado de organização hierárquica de cunho aristotélico. É, sim, Religião, mas na própria acepção da raiz da palavra, ou seja, religação, elo de ligação entre a criatura e o Criador, sem qualquer ritual sacramentalista ou crença em derramamento de sangue salvífico, que tenta substituir o sacrifício do bode expiatório do judaísmo pelo do cordeiro divino, à guisa de resgate de todos os pecados.
Enfim, o Cristo que se proclamou “o caminho, a verdade e a vida” não fundou seita religiosa, mas criou um roteiro de religiosidade libertadora, que, palmilhado pelo ser humano, com seu próprio esforço e ajuda divina, através dos anjos da espiritualidade (Espírito Santo) leva-o à autorrealização (salvação), na prática do amor a Deus e ao próximo como a si mesmo, que, segundo Jesus, resume todos os mandamentos da lei e dos profetas, conforme bem demonstra o símbolo da pequena cruz (+), que é mais na Matemática, positivo na Física e redenção religiosa, porquanto traduz o encontro da vertical da mística do amor a Deus com a horizontal da ética do amor ao próximo.
Na casa de retiro espiritual dirigida por Rohden, em Jundiaí S.P. estava escrito na parede do refeitório: “Realiza a mística de Deus, através da ética dos homens, na estética da natureza.”
O caminho é a prática da caridade, considerada como fundamental pelo chamado apóstolo dos gentios (I Coríntios, C.13, V.13), a qual, entretanto, não se confunde com meros atos de filantropia oriundos da vaidade humana, mas de uma permanente atitude de amor, sem o que não ocorre a redenção da criatura humana, conforme proclama Alan Kardec, o codificador da doutrina espírita (“Fora da Caridade não há salvação”).
O Cristo deve eclodir em cada criatura, na experiência individual do ser humano feito à imagem e semelhança de Deus, sem nenhuma necessidade de aguardar um suposto retorno do Divino Mestre, a chamada parusia. Ele nunca foi, está latente dentro de nós. Pode até voltar, mas em visão materializada, quando seu reino se estabelecer na Terra, e jamais em uma nova encarnação, como infantilmente apregoam alguns segmentos religiosos.
Através do apóstolo Paulo, o Cristianismo expande-se na Grécia, por toda a Ásia Menor e Europa. Cartas são dirigidas à Roma, Éfeso, Corinto, Filipos, Tessalônica, Colossos e à Galácia. O último livro bíblico, Apocalipse, que retrata uma visão profética do discípulo S. João, faz referência a sete comunidades cristãs da Ásia Menor, para cujos dirigentes registram-se mensagens da espiritualidade superior, com censuras a algumas visando ao seu aperfeiçoamento. São elas: Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodiceia.
Esta última teve o seu pastor severamente acusado de não ser frio nem quente, mas apenas morno, e por isso poderia ser vomitado da boca divina, isto é, excluído, por causa de sua tibieza, indiferença, do rol dos escolhidos para o comando dos trabalhos em prol da evolução da humanidade.
Trata-se de uma antiga cidade da Frígia, cujas ruínas se encontram, atualmente, nas proximidades de Desnizli, perto de Éfeso na Turquia. Foi fundada, nos meados do século III A.C., por Antíoco II, em homenagem à esposa Laodice, que mais tarde o teria assassinado com veneno, conforme alguns historiadores, inclusive Cesare Cantú.
Uma outra Laodiceia, em cujas imediações (apenas 6 km ao norte) floresceu Ras-Shanra, sede do reino de Ugarit, um notável sítio arqueológico da antiguidade que remonta aos tempos dos fenícios, 1.800 anos A.C. descoberto em 1929, é a atual cidade de Latakia, capital de um Estado do mesmo nome, o mais importante porto da Síria, cuja fundação se deu, no século IV A.C., pelo rei Seleuco Nicátor, em homenagem à sua mãe Laodice, bisavó de Antíoco II e da esposa assassina, que tinha o mesmo nome.
O citado rei, personagem real da peça teatral “El Rei Seleuco”, do famoso poeta clássico Camões da literatura portuguesa, foi general de Alexandre e depois da morte deste, tornou-se o soberano do reino da Síria, que abrangia toda a Ásia Menor e a Mesopotâmia. Por ele foram edificadas outras 34 cidades, entre as quais a Antioquia síria, um dos maiores núcleos da cristandade primeva, que, a partir de 1939, passou a pertencer à Turquia e se chama atualmente Antákia. Aí nasceu S. Lucas, autor do terceiro evangelho, que melhor retrata o nascimento de Jesus, como protótipo da nova humanidade (o “Filho do Homem”, de origem divina e não carnal).
Desta cidade veio para Goiânia o ilustre pe. Michel, que foi vigário da Igreja Católica Ortodoxa São Nicolau, no Setor Oeste, e fundador da escola do mesmo nome, cujas construções se deram, graças à efetiva participação do senhor Calixto Abrahão e de outros abnegados confrades, em terrenos doados pelo governador Mauro Borges Teixeira. O atual vigário da igreja é o padre Rafael Magul, que vem desenvolvendo o seu bom ofício pastoral não só em Goiânia, mas também na simpática cidade de Ipameri.
A antiga Laodiceia síria – um nome tão bonito, mas que devido à pronuncia gutural da consoante “c” dura (som de K) da língua árabe, acabou se transformando em Laudkia e, finalmente, Latakia, em seu aportuguesamento. Esta cidade, que sofreu influência dos egípcios, gregos, bárbaros oriundos da Ásia Menor, romanos, bizantinos e dos chamados “cristãos” das cruzadas, erigiu-se mais tarde em grande núcleo de famílias cristãs, que sofreram grandes perseguições do domínio turco, sobretudo sob a ditadura cruel do sultão Abdul Hamid II (1876-1909).
Filhos de cristãos eram discriminados e até mesmo impedidos de frequentar escolas públicas. Tinham que estudar em educandários particulares de nações estrangeiras (Rússia, França) e, em plena adolescência, convocados para o serviço militar obrigatório, aí então, se não morressem nas guerras, voltavam para casa, após lavagem cerebral, e não mais comungariam os ideais do berço familiar. Em face disso, muitos partiram para o exílio, em busca da liberdade.
Jad Salomão, nascido em Latakia, fez estudos na Rússia czarista, em escolas cristãs ortodoxas, depois se tornou professor na Síria e também na importante cidade libanesa de Trípoli, próxima a Beirute, mas, por causa das perseguições religiosas anticristãs, teve que deixar o torrão natal e vindo para o Brasil, juntamente com a esposa d. Catarina Jorge, passou a residir na cidade de Goiandira, no sul goiano, quando ali chegaram os trilhos da via férrea, em 1912.
Pioneiro nessa cidadezinha nascente, dedicou-se ao comércio de tecidos. Posteriormente vieram seus cunhados José Jorge Badra e Elias Jorge, que também passaram a integrar a comunidade goiandirense. Finalmente chegou o irmão mais novo destes, João Jorge.
O prof. Jad e d. Catarina residiram também em Araguari, MG e, posteriormente, em Anápolis, onde tiveram numerosa prole com filhos, netos e bisnetos ilustres. O casal teve destacada presença na sociedade local. Seus nomes aparecem denominando bairro, ruas e até mesmo um educandário desta importante cidade goiana.
José Jorge Badra (meu avô materno) adolescente ainda, disse adeus para sempre aos pais, à pátria, à querida cidade praiana do Mediterrâneo e, depois de uma longa viagem de vários meses a bordo de um vapor francês, aportou em Santos, no litoral paulista, onde, dias depois, com olhos lacrimejantes, viu a partida de retorno da embarcação, cujo apito lhe doeu no coração.
Tão logo chegou, passou a trabalhar numa oficina de fabricação e conserto de calçados, atividade que aprendeu desempenhar já nos tempos de criança, por isso dizia sempre que toda pessoa, independentemente de qualquer estudo, deveria ter um ofício profissional, que, segundo o grande cientista e pensador norte-americano Benjamim Franklin (inventor do para-raios), vale tanto, como uma produtiva propriedade de terra.
Casou-se com uma humilde filha do fazendeiro Evaristo Martins Tristão, genro do ilustre dr. Manoel de Oliveira Cavalcante de Albuquerque (3º juiz de Direito de Catalão – nomeado por D. Pedro II), dedicou-se a atividades rurais, aprendeu a trabalhar em serviços de agrimensura e mais tarde atuou como comerciante no Triângulo Mineiro (Araguari e Uberlândia). De volta a Goiandira, planejou e instalou a primeira usina elétrica rural na fazenda S. Miguel, de propriedade de Geraldo Gonçalves de Araújo, operou no serviço de transporte de cargas como caminhoneiro, e construiu uma panificadora, com um moderno forno para a época. Seu aquecimento era feito com o mínimo de madeira, cujas cinzas e brasas não atingiam o local onde os pães eram assados. No então distrito de Anhanguera, instalou a primeira serraria de madeiras movida por um locomóvel a vapor.
Seus últimos anos de existência, foram no bairro de Campinas, em Goiânia, para onde veio em 1948, faleceu como chefe de numerosa família, constituída de ilustres descendentes. Lembro-me dele, com uma bíblia na mão, escrita em árabe, sempre discutindo sobre o verdadeiro sentido de textos evangélicos com alguns missionários redentoristas (padres Américo Stringhini e Leodônio Marques), que visitavam sua casa, porque a esposa d. Maria Jorge e o filho Salomão Jorge muito trabalharam pela construção da Igreja Nossa Senhora Aparecida, no alto da Rua Benjamim Constant, no bairro de Campinas.
- Maria Jorge ficou muito conhecida pelo eficiente trabalho de manipulação de vermífugo contra a lombriga Tênia, vulgarmente chamada “Solitária”, o que chegou a ser objeto de reportagem do mais intrépido órgão de nossa imprensa – o bravo semanário “Cinco de Março”, precursor de nosso magistral Diário da Manhã.
Elias Jorge pode ser considerado um dos benfeitores de Goiandira. Doou terrenos para obras importantes da cidade, tais como a construção do hospital, poço artesiano de abastecimento de água, estação ferroviária, estádio, além de edificar e presidir a primeira agremiação espírita – o Centro Espírita Jardim de Luz, que muito benefício trouxe para a população local, através dos ensinamentos cristãos e da prática da caridade.
João Jorge, conhecido por João Micharia, não se casou, levou uma vida de nômade, deslocando para festividades em todo o Estado de Goiás, com seu parque de diversões, cheio de brinquedos para crianças e variadas atrações, entre as quais a famosa cabeça, que movimentava no centro de uma mesa e ninguém via seu corpo, graças a um truque de reflexo de espelhos, jamais percebido pelos espectadores, que ficavam maravilhados durante o espetáculo.
Todos eles deram um bom exemplo de honradez e trabalho e nenhum acumulou riquezas materiais. Tiveram o indispensável para viver bem e servir a coletividade, como autênticos cristãos, que fugiram das garras do Anticristo na terra natal e vieram para o Brasil predestinado a ser o “Coração do Mundo e Pátria do Evangelho”, conforme o livro do espírito Humberto de Campos, psicografado por Francisco Cândido Xavier.
(Vivaldo Jorge de Araújo, ex-professor de História e Língua Portuguesa do Lyceu de Goiânia, escritor e agente aposentado do Ministério Público do Estado de Goiás)
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