Fuzuê no velório de um “defunto morto”
Diário da Manhã
Publicado em 20 de dezembro de 2017 às 00:00 | Atualizado há 7 anosSenhor Delegado.
O Joaquim morreu.
Mas antes de morrer ele tinha arranjado duas mulheres.
A outra sabia da uma.
Mas a uma não sabia da outra.
Joaquim morto, foi lá a outra verter o seu dorido pranto justo na casa e na cara da uma. Desaforada…
Ah! Lá ninguém me conhece mesmo…
Vão achar que eu sou amiga da vizinha
da tia do irmão de um primo de segundo grau
do Joaquim… e pronto.
Fica tudo por isso mesmo.
Eu vou.
E foi.
Meteu-se num vestido que não chamasse muita atenção e entrou de fininho. Muita gente pelos cantos a choramingar. Cada um mais desconsolado que o outro. Outros, por outros e mais discretos cantos, a bater papo furado. Outros mais até contando piadas a boca-pequena pra passar o tempo… de um velório tão comprido. Mania que todo mundo tem de ficar cozinhando defunto…
D’entre estes, a outra.
No meio da sala, o Joaquim.
Duro.
Frio.
Espichado e bem vestido. Com desvelo e muito
carinho, bem arrumadinho numa imbuia de segunda.
O pranto lícito, legal, legítimo, moral e naturalíssimo da uma bem juntinho do Joaquim espichado no meio da sala, fazia-se ouvir por todo o quarteirão.
– Buáaaa!… Buáááá!… Buáááá!…
A outra chegou, deu algumas olhadas de soslaio, e de fininho foi também pra
junto do mesmo Joaquim. E lá, bem no meio da sala, puseram-se as três: a uma, a outra, e a imbuia.
A uma, de cá. 17
A outra, de lá.
A imbuia, no meio, guardando o Joaquim.
E toma berreiro da uma:
– Buá!… Buá!… Buá!… Buá!…
Tão dorido e copioso pranto houve também de, tanto quanto, comover a outra. Foi lá no fundo do coração, subiu aos olhos e… fechou hermeticamente a boca e… abaixou a cabeça e… fechou os olhos e… não agüentou. As comportas se abriram e as águas rolaram. Foi mais forte do que ela. Tadinha…
– Buéééé!… Buééééé!… Buéééé!…
Mas que coisa, gente?!…
É. Afinal, ela também tinha os seus direitos, pois não…?
E tanto chorou que a uma foi ficando desconfiada…. Trem esquisito, uai… quem é esta outrazinha que gostava tanto assim do meu Joaquim…? Não é irmã, não é mãe, não é filha. Então… será que aquela fofoca da Terezinha tinha mesmo alguma verdade…?
Era o que, à memória, perguntavam os pensamentos da uma do Joaquim, lembrando-se do que há tempos havia lhe dito, no pé do ouvido, aquela Terezinha. Decidiu conferir, fazendo torcida para que fosse mesmo mentirosa, tal Terezinha. Estendeu o braço por cima da cara-de-pau do Joaquim e, princípio, respeitosa e carinhosamente cutucou a cabeça baixa da outra. Queria porque queria saber quem, com ela, tão solidariamente, dividia tanta dor…
-Repara não, dona, mas… a senhora conhecia o meu Joaquim…?
A outra levantou a cabeça. Fungou o nariz, limpou os olhos e no auge do desespero – ‘tadinha… ela também gostava meeeesmo muito daquele Joaquim… – fez foi abrir mais ainda a boca no mundo, e deixar extravasar muito mais do que a uma, seus reverberantes bués:
– Buéééé!… Buééééé!… Buééééé!…
Se à outra não deu mais para segurar, à uma não deu mais para duvidar. Era a outra mesmo! O fedaputa do Joaquim nunca deixou transparecer nada mas… a uma nunca deixou de fincar um pé atrás. Então, não há de ver que o Joaquim era é um sem-vergonha mesmo, gente?!… E agora, a prova ‘tava aí, ó. Terezinha tinha razão e o pau quebrou…
Sem mais, passando por cima do Joaquim a uma socou com a destra no ouvido canhestro da outra, com peso e impulso tais e quais a um saco de areia caindo da carroçaria de um caminhão, um muito macho pescoção, acompanhado de mui calorosa dedicatória:
– Toma isso, vagabunda: Póff!
– Ai!!
A coitadinha da outra foi com as duas mãos socorrer a orelha vitimada pelo coice da uma. Deixou assim a outra, a descoberto. Disto serviu-se a uma, e despachou pra lá mais um coice da sua destra, sempre acompanhado de fervorosas dedicatórias:
– E mais isso: Póff
!- Ai!-Ai!…
Não havia mais como dissimular. A outra, assim descoberta, assumiu. E sem mais respeitar imbuia de Joaquim nenhum deu o troco. De mesmo peso e número. Conquanto de outro jaez. Para tanto correspondeu com o troco naquele velho sistema: “telefone”. Entretanto não ao mesmo tempo. Senão ‘rebentaria seus miolos. Mas foi um quase juntinho do outro. O primeiro com a destra, e o segundo com a canhestra:
– Toma ‘ocê tamém, sua chifruda!
Tapóff!!
– Tapóff!!
Deu-se assim o início de um interminável intercâmbio de tapas e coices seguido de uma ladainha de mesma duração em títulos da mais variada espécie. Pragas, pesadas, mãozadas, puxões de cabelo, unhadas, dentadas, mordidas, e patadas tantas que nem Deus conveniado com o Capeta, em companhia de todos os anjos, santos, demônios e diabos destas duas transcendentais milícias seria capaz de dar um jeito. Credo.
E foi mais ou menos ipsis litteris… assim:
– Puta!
– Rapariga!
– Biscate!
– Quenga!
– Paiaça!
– Encosto!
– Égua véia!
– Desgraçada!
– Rapariga!
– Larga meu cabelo, bucho!
– Então larga o meu tamém, baranga!
– Mãe, respeita o pai!
– Respeito não! Ele era um safado mesmo!
– Safada é ‘ocê sua sem-vergonha!
– Gente, pára com isso pelamordedeus!
– Num páro! Essa putinha vai ver uma coisa!
– Putinha é ocê sua besta!
– Acode, meu Divino Pai Eterno!…
– Eu acabo c’ocê, sua merda!
– Eu acabo c’ocê primero, sua fedaputa!
– Aaaai, disgramada dos inferno’! Tira o dedo do meu ôi!
-‘Intão tira o seu do meu tamém!
– Num tiro!
– ‘Intão eu tamém num tiro o meu do seu! E vou é enfiar mais ainda!
– Gente do céu! Dexa’ disso, pelo amor da Virgem Santíssima!
– Não! Ela tem que me pagá!
– Vai se daná merda!
– Safada!
– Pustema!
– Sarnenta!
– Bruxa!
– Balofa!
– Canhão!
– Trabuco!
– Corôa véia!
– Rabicho!
– Dona Benta, o padre chegou pra benzê e encomendá a alma do ‘seu’ Joaquim!
– O padre que vá pro inferno da puta que pariu êle!
– Deus que me perdoe a senhora, mãe! Quem xinga padre é excomungado!
– ‘Cê num respeita nem um home’ de Deus, sua pecadora ‘mardiçoada!
E de profundis deste inferno uma mulher esquisita, igualmente desconhecida da uma e da outra tentou apaziguar, livrando a outra de mais uma saraivada de patadas da uma:
– ‘Faiz isso com a coitada, não, dona!
E tentava mostrar porque não valia mais a pena brigar:
– Pára! O marido d’oceis duas já morreu mesmo!
A uma respondeu na fumaça, dando uma cuspida no rumo da esquisita chegantee apaziguante:
– Aposto que ‘ocê dava pra ele também, puta safada!
– Ôpa! Me respeita, muié!
Senhor Delegado, daí o cura que havia acabado de chegar empunhou o seu hissope e deu com ele um verdadeiro banho de água benta no defunto, nos amigos do defunto e nas duas mulheres do defunto, abraçadinhas uma à outra ali no chão bem debaixo da imbuia do Joaquim. Nem aquele dilúvio abençoado de água benta e consagrada apagou o fogo das duas briguentas.
– Minhas filhas! Em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo e da Virgem
Dolorosa, parem com esse inferno…!
– Paro não!
– Escuta o padre, comade!
– Vai a merda!
– É a palavra de Deus, madrinha!
– Porra nenhuma!
– Excomungada!
– In nomine Patris et filio et Spiritu Sancto, ego te excomungo: vade retro, satanaz!
Nada. Nem o misterioso latim do padre deu jeito no capeta. Com certeza nem ele entendia direito essa língua misteriosa. Então, tentou mais uma vez a expedição da ordem maldita e repetiu tudo no vernáculo, acrescentando por conta própria alguma coisa mais.
– Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, eu te excomungo: volta pro meio do inferno, espírito imundo do maligno amaldiçoado!
E enquanto reiterava a chuvarada de água benta com o seu aspersor pra cima do de cujus, das briguentas e de mais todo mundo, todo mundo, com o respeito mais piedoso do mundo, com a velocidade do raio se persignava de cabeça baixa. E as duas, dando regular sequência àquele entrevero:
– Eu te esgano, fia d’uma égua!
– Eu te pico, fedamãe!
– Parem com isso, minhas filhas! Entreguem tudo na justiça das mãos do Altíssimo!
Senhor Delegado, nisso também Vossa Senhoria não há de acreditar, mas nem a aludida e sugerida Suprema Autoridade apareceu para dar jeito naquele assaz feio fuzuê.
E todo o fuzuê desse bafafá acontecia bem debaixo do Joaquim. Aos primeiros tapas intercambiados foram as duas para o chão. A outra por cima da uma. Mas a uma, num golpe magistral, que aprendeu não sei onde nem com quem, logrou girar o corpo, que foi então parar onde parou. E lá continuou.
– Cadela!
– Cachorra!
O detalhe que se há de observar, Autoridade, é que o caixão donde se punha o Joaquim… quer dizer… os restos do Joaquim, estava apoiado em dois cavaletes. E uma daquelas violentas esperneadas encontrou na sua trajetória um pé do cavalete. Horror, Senhor Delegado! Horror! A imbuia espatifou-se no chão, e o Joaquim, também. Foi um deus-nos-acuda que Deus me livre e guarde. Os convidados para as sagradas cerimônias de requiem trataram logo de fazer Joaquim outra vez no mesmo caixão.
Sorte é que tão tenebrosa missão não demandou muito esforço. Àquela altura o Joaquim já estava tal e qual uma prancha de peroba. Só careceu de um que pegasse nas pernas e outro, que o agarrasse pelos sovacos. Enquanto as duas davam prosseguimento àquele acerto de contas. Credo.
Foi mesmo aí nesse momento que chegou, chamada por não sei quem, para participar da maneira que lhe competia, uma equipe de visitantes. Zeca, filho do casal, foi quem, às duas contendoras, tal visita anunciou:
– Mãe! A Polícia chegou!
– Manda voltar mais tarde! ‘Posso atendê’ agora não! ‘Tô ocupada!
A fúria era tamanha que encobria, obstruía e comprometia por inteiro o senso da pobre viúva. Até que dois pares de coturno de couro de dimensões pouco menores que o caixão do Joaquim emparelharam-se, um de cada lado, bem pertinho das cabeças da outra e da uma.
Só então é que Benta viúva deu por fé dos novos visitantes. Era uma guarnição da gloriosa Polícia Militar do Estado de Goiás, comandada pelo Tenente Clemente. Então, num átimo de segundo a uma postou-se sobre a outra não mais como agressora, mas como socorrista de emergência. Para confirmar o caráter de tal procedimento continuou batendo, com as duas mãos, na cara da outra, mas para reanimar a coitadinha, uái?! Verdade, Autoridade! A pobrezinha havia era desmaiado por não conter a emoção diante do corpo frio do Joaquim. Por isso continuou batendo e falando assim:
– Menina do Céu! Reaje, queridinha! Acorda! Você precisa ser forte nessas horas diante da morte! ‘Garra com Nossa Senhora da Boa Morte pra te ajudar! Vou buscar um copo d’água pra você, ‘pera aí, tá?
E ao levantar-se muito apressada é que deu de cara com a cara sisuda do Tenente Clemente. Então, com a sua lambida olhou para eles, estendeu a mão mostrando a outra debaixo da imbuia. E no tom mais terno e doce desse mundo disse assim
– Tadinha! Não aguentou…
O Tenente Clemente, bravo comandante daquela guarnição fez que foi na dela, mas ressalvando assim:
– É mesmo, dona Benta?! Que coisa! Mas… quem chamou a polícia falou no telefone que o que fez essa pobre menina assim no chão, precisamente debaixo do caixão não foi a emoção. Foi a sua mão!
– Gente mentirosa, Tenente! Credita neles não!
Assim sendo, Senhor Delegado, o Tenente Clemente, sábio, capaz, humano e competente assaz, sem prejuízo do ofício, acalmou os ânimos. E como já estivesse já esgotado o tempo de tolerância de um corpo não embalsamado a família providenciou imediata inumação. Depois, à presença de Vossa Senhoria trouxe as duas para mais detalhes fornecer da vida pregressa do Joaquim. Nestes termos assina este boletim.
(Francisco de Oliveira Santos. Chiquim o ecrivão. Será publicado em breve na obra “Teje Preso!”)
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