Gavião antenado
Diário da Manhã
Publicado em 29 de janeiro de 2018 às 22:08 | Atualizado há 7 anosMatreira, sabia muito bem Maricota esconder o mal feito. Para muitos mal feito, vez que para um ego tomado de razão, adrenalina pura. Nitroglicerina, talvez. Furtiva, ganhava a rua. Um ronco de escapamento na esquina.
Hoje, com celular à mão, pragmatismo às inclinadas em demasia ao perigo libidinoso. Tecnologia a serviço de esquemas, de escapulidas à socapa. Chumbo trocado, ora pois! Recôndito pensamento a justificar o pular de cerca:
– Bem feito para esses homens que não prestam.
Em presença do marido, toda dengosa, disfarçando a contento. Expedito, na posse garantida há oito anos de casado. Que mulher sua andava direito, pois só dava motivo à bem querência. De casa para a lida, da lida para casa. Engana-me que eu gosto. No tirocínio Maricota, matutando.
– Por isso estamos tanto tempo juntos, não é, amor?
Um esgar de sorriso irônico no rosto de Expedito. Um perito nos esquemas? Nem tanto. Maricota pressentia o cheiro de fêmea, perfume ordinário. Às vezes manchas na roupa. Reclamava para não dar azo a suspeitas de seu troco mordaz. Sutis nuances psicológicas, para disfarce. Uma mulher sabe armar e desarmar, amar e desamar. A faca e o queijo na mão.
No fundo havia o receio de Maricota. Nunca se sabe… Crimes passionais, a todo tempo se vê. Programas sensacionalistas na televisão se deleitando com os fatos, audiência certa. Pilhérias de mau gosto com a desgraça alheia. Pimenta nos olhos dos outros é refresco…
Deus a livrasse de ser varada na peixeira. Expedito era cabra arretado, nascido e criado nos confins do sertão nordestino. Acostumado a trinchar calango nos dentes. Recém-casados, vieram embora para São Paulo ou morriam por lá por causa da seca e da pobreza. Se arranjaram na cidade, Expedito bom de colher. Fez-se, tijolo por tijolo, pedreiro de fama.
Fim de semana, o pedreiro no descanso merecido. Beberica a sua caninha com mel na companhia de Ventura, vizinho solteirão, companheiro de levantamento de copos. Este de antena ligada, já a vira de relance na cozinha. De repente, à memória, as comadres da vizinhança, línguas afiadas. Sempre não se sabe. Fica o certo pelo duvidoso.
Mas o marido era o último a saber, e tinha de ser. E era bom que não soubesse mesmo. Deixasse pra lá. Em caso de marido e mulher, não se deve meter a colher, nem mesmo o amigo da onça. Fazer-se de cego e mouco, fingindo estar voando no assunto. Comigo não, fico na minha. Deslizando na neve, pensava o vizinho. No fundo um remorsozinho, o amigo trazendo para ele os pratos feitos pela patroa.
– Sabe, Ventura, preocupa-me uma coisa…
O amigo esfriou, entornou mais um gole postergando a pergunta, que veio depois de um estalo de língua.
– Delícia esta loira gelada… Mas o que é?
– Um gavião agora cismou de rondar a minha casa. Ora bolas! Não é preocupante?
– Um gavião!? Não é impressão sua? Quem é o imoral, já tem pistas?
– Ele é muito esperto de pegar, fica muito lá em cima, na antena…
– Como assim?…
– É uma ave. Um gavião de verdade. Pensou que fosse o quê, camarada?
– Ufa! – Menos mal, ponderou o vizinho, no degelo. Ainda bem, mas você também precisa ficar antenado… – Gracejou Ventura.
– Imagine, você… Às vezes dá umas rasantes no quintal, feito kamicaz. Outra vez pensei que fosse aterrissar no meu ombro, o velhaco. Mas já o peguei no quintal, todo janota, chapando grilos e de olho nas frangas do galinheiro.
– É.. Mas aqui tem galo que cuida muito bem do terreiro…
– De fato, meu amigo, não vem que não tem… Aqui não, macarrão! Aqui é peixeira da bruta!
Por outros vizinhos já fora visto pelas redondezas o tal gavião. Quando assenta nas antenas, os vizinhos comentaram, a imagem na TV chuvisca. Explicava Ventura, quando Expedito retrucou que com a dele nunca acontecera, a imagem sempre cristalina. Mesmo com o Olímpio lá pousado na antena de sua casa.
– Olímpio? Então já tem nome o janota?
Não tinha, mas estava sendo no momento nomeado pelo marido de Maricota. Enfim, sabe, confessa, coração de manteiga, que já estava se afeiçoando ao gavião. O pobrezinho pia deveras, um langor triste, carente. Parece até requerer atenção. Conforme seja, falando sério, disse que iria capturá-lo e domesticá-lo, prendendo-a para sempre no seu galinheiro no canto do quintal.
– Você me ajuda, Ventura?
Gargalhadas e o vira-vira. O amigo confirmou com o balançar de cabeça, ressabiado. Maricota, solícita, a servi-los com nacos da carne malpassada, tira-gosto com gosto de sangue.
(Joaquim de Azevedo, professor e escritor – jazevedo@hotmail.com.br)
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