Lições de uma tragédia
Diário da Manhã
Publicado em 23 de janeiro de 2018 às 22:41 | Atualizado há 7 anosHá tempos venho hesitando em escrever sobre o caso do adolescente que matou a tiros seus colegas em uma escola em Goiânia. Desde aquele triste episódio, não teci nenhum comentário para não parecer oportunista, mais um na multidão de julgadores, ávidos pelo linchamento público à partir da primeira matéria de algum jornal televisivo.
Aguardei o desfecho do caso não por respeito a um ou outro lado dos envolvidos na tragédia, embora eu o tenha imensamente, mas, simplesmente, por respeito às minhas convicções. Nunca tive vocação para abutre de ocasião. Sempre repudiei os julgamentos precipitados pela mídia, como ocorrem quando um caso é explorado midiaticamente, insuflando a população ao ódio contra o suspeito de algum crime sem sequer saber ao certo o que de verdadeiramente aconteceu; se procede ou não as suspeitas atribuídas àquela pessoa.
No caso dos assassinatos ocorridos na escola, um adolescente, filho de pais policiais militares, utilizando-se da arma da corporação, atirou contra seus colegas matando e ferindo outros. Em tempos de recrudescimento da violência e de despicienda inversão de valores, algumas das mazelas de uma sociedade individualista e incivilizada, a banalização do mal torna-se uma de suas características mais peculiares. Nesse terreno de indigência cultural e civilizatória a população é facilmente manipulada e torna-se alvo fácil para a assimilação e resignação aos discursos da classe social dominante, tão bem e fielmente repetido pelos agentes das forças de justiça criminal, do tipo “bandido bom, é bandido morto”, “redução da maioridade penal”, etc. Curiosamente, os agentes das forças de segurança demonstraram que detém o monopólio do modo de como cada caso criminal deve ser enfrentado.
É sabido que a busca frenética pela institucionalização de um estado policialesco, cada vez mais implementado no Brasil, leva a discursos simplórios sobre formas de enfrentamento da violência, sempre acompanhados da anatemização das garantias civis e a completa demonização de qualquer norma que assegure o mínimo de proteção e segurança jurídicas ao cidadão que se encontre em situação de investigado criminalmente. A incompetência policial, associada à estigmatização social, construiu no imaginário coletivo da sociedade brasileira a fixa ideia de que as classe sociais mais pobres são a grande causa dos índices de criminalidade. Desta forma, discursos em defesa da redução da maioridade penal, pena de morte, maior duração do tempo de encarceramento, são construídos almejando atingir-se apenas os segmentos sociais pobres, periféricos. O episódio que culminou com o assassinato dos estudantes no interior de uma escola particular de classe média evidenciou muito bem essa dicotomia do discurso sobre a criminalidade.
Quando o adolescente, autor dos disparos, foi imobilizado e detido, divulgou-se que ele teria cometido uma chacina contra os seus colegas de escola. Posteriormente, ao saber que se tratava de um filho de policiais, mais especificamente, de oficiais da polícia militar, a abordagem mudou imediata e radicalmente. Aquele garoto, que disparou diversos tiros de uma arma de calibre altamente letal, deixa de ser um assassino frio, egoísta e incapaz de lidar com as contrariedades naturais da vida em sociedade e passa a ser convertido em um pobre menino, vítima de bullying. Aliás, é curioso como o tal de bullying, esse fenômeno da superficialidade social contemporânea, só existe entre crianças e adolescente das classes média e alta. No meio das camadas pobres esse termo é até impronunciável, compreensível apenas expressões do tipo “criminoso de menor”, “moleque que precisa de surra”, “marginalzinho protegido pelo ECA” (Estatuto da Criança e do Adolescente), etc. Qualquer ação ilícita advinda ou com a participação de crianças ou adolescentes de classe pobre é imediatamente classificada como “artimanha para que o criminoso permaneça impune”.
Como se fosse um “acordo coletivo”, a própria imprensa, sempre afeita à espetacularização das tragédias humanas, imediatamente aderiu às conveniências semânticas de como abordar o caso, doravante tratado não mais como um crime despiciendo, praticado por um “de menor’, mas, como sendo “um fato lamentável”, onde uma “vítima de bullying” se viu na contingência de ter que disparar e matar os seus colegas de escola”. A partir disso, toda a estrutura dos órgãos de repressão penal se engajou em um único propósito: buscar a “apropriada” e imediata providência para a inusitada situação.
De imediato, a população mudou o discurso. O ódio ao adolescente infrator, em razão do crime tão dilacerante, foi substituído pela compaixão. Atendendo ao apelo da versão oficial, o frio assassinato passou a ser tratado como sendo uma “reação natural de uma vítima de bullying”. Os pais do criminoso, por sua vez, foram poupados do estigma raivoso de “irresponsáveis” ou de “culpados pela índole do filho”, calcado no jargão segundo o qual “o ser humano é produto do meio” ou que “educação vem de berço”, e passaram a merecer a compreensão da multidão que, em coro, bradava que os pais, por melhores ou piores que sejam, não podem ser culpados pela conduta dos filhos. Livre arbítrio, criminoso nato, autodeterminação, passam a ser divagações confusas demais. Melhor não incursionar sobre terrenos tão pantanosos.
Em uma situação inédita, ninguém manifestou em público, indignado com a “sensação de insegurança”, ser a favor da redução da maioridade penal. Também ninguém defendeu a pena de morte. Nem mesmo, sequer algum policial, desses sempre afinados com o discurso do direito penal máximo, ousou tecer críticas à “sensação de impunidade”, diante dos crimes praticados pelos “de menor”.
A trágica e injustificável morte daquelas inocentes crianças, não passou incólume aos olhos dos observadores jurídicos. Afinal, tratou-se de um raro ou inédito caso onde se viu o cumprimento das normas mínimas de preservação e respeito à dignidade da pessoa humana, insertos nas garantias do devido processo legal.
Primeiro, respeitaram-se o direito à imagem (art. 5º, V, X e XLIX, da Constituição Federal, art. 38, do Código Penal, art. 40, da Lei de Execuções Penais, art. 4º, alíneas “b” e “h”, da Lei de Abuso de Autoridade, 4.898/65), tendo as polícias e os órgãos de impressa, providencialmente, impedido que fosse feita a exposição do preso de forma sensacionalista, um incomum respeito tanto às normas contidas na Lei de Execuções Penais, no Código Penal, na Constituição Federal, quanto no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, Lei 8.069/90.
Por sua vez, juízes e promotores de justiça protagonizaram o imediato respeito às normas internas e dos tratados internacionais que versam sobre o direito dos presos de serem apresentado imediatamente ao juiz para que este delibere sobre a legalidade ou não da prisão. Em poucas horas, decisões foram tomadas para que não pairassem quaisquer indefinições sobre a condição do detido. O representante do ministério público (assim mesmo, em letras minúsculas), por sua vez, também tomado por essa contagiante conveniência jurídica de respeito à Constituição do país, prontamente manifestou que ele próprio se incumbiria de adotar as medidas necessárias à preservação da integridade física de menor infrator, em respeito ao princípio da individualização do cumprimento de pena, observando-se o ambiente salubre e condigno com a condição humana do preso.
Não se viu, igualmente, nenhum vetusto vituperar contra o cumprimento das leis. Ninguém foi à imprensa, nem às redes sociais, como também nenhum raivoso apresentador de televisão, criticou a “fragilidade de nossas leis que só servem para beneficiar bandidos”. Nenhum policial teve a coragem ou a coerência para repetir a contumaz asneira do “direitos humanos são para os humanos direitos”.
Outro fenômeno observado a partir desse trágico episódio é a extraordinária capacidade de esquecimento para fato tão recente. Enquanto a população até hoje (até os que nasceram posteriores ao fato) se comove com o assassinato de uma atriz de televisão, ocorrido no ano de 1992 há, por aqui, uma total indiferença e apatia em relação ao crime em si, às vítimas e, principalmente, às dores dos familiares das vítimas.
Em uma sociedade cega e facilmente manipulada, as pessoas tornam-se ventríloquos nas mãos dos órgãos de força a serviço do controle social que as programam para repetirem apenas aquilo que lhes convém. Apesar de deplorável, chega a ser risível perceber que aquilo que arrostam chamar de “na minha opinião”, ou, “eu tenho a seguinte opinião”, não passa de energúmenos que, apesar de oprimidos, são adestrados para reproduzirem como verdades os discursos convenientemente construídos por seus opressores.
(Manoel L. Bezerra Rocha, advogado criminalista – mlbezerraro[email protected])
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