Opinião

Lombos de jegues

Diário da Manhã

Publicado em 11 de dezembro de 2015 às 00:27 | Atualizado há 9 anos

Não sei se já escrevi este fato verídico. Mesmo que o tenha contado, vale repeti-lo, para aprendizado.

Minha amiga Delly, à mesa ao lado da minha, repassava laudas de crônicas que eu havia escrito, quando teve a ideia.

— Por que você não seleciona algumas dessas escritas e não enfeixa um livro?

— Boa ideia. Você mesma podia separar algumas crônicas dessas…

E ela o fez. Foi lendo, selecionando, sobrepondo página sobre página, ao fim do qual me perguntou:

— Que título colocaremos? — E eu:

— Escolha o título de uma crônica, e veremos.

Eu continuava redigindo o “Jornal Falado Cultura”, e Delly voltou a indagar.

— Que tal este título “Há tantas flores pelos caminhos”…?

— Gostei… Respondi. E você?

— Adorei e vai dar sorte…

Ela o enfeixou e na primeira chance fui a São Paulo, em busca de uma Editora. Entrei numa livraria imensa e perguntei por uma gráfica.

— Olha ali. E apontou um edifício lindo, estilo clássico, sóbrio. Não vi nome em lugar nenhum. Pensei. Mas numa editora dessas, não posso nem passar na porta vetusta. Estilizada. Aproximei-me para achar a placa. Mas só lá dentro. Então cheguei à porta e espiei uma sala de entrada do tamanho de uma quadra. Numa coluna redonda, a placa: Editora “O Pensamento”.

— Pelo amor de Deus! Saí à procura de uma gráfica, mas fui longe demais.

Acanhado, humilhado, sem fazer sinal nem com o pisado, saí de mansinho e só lá fora estuguei o passo. Quero uma gráfica Espírita. Ensinaram-me a Editora Allan Kardec. Fui lá. Fui bem atendido, gente educada; falei do livro, o moço o folheou, leu partes e telefonou para alguém dizendo que fosse lá.

Pouco depois chegou um senhor e se apresentou como Saulo (nome fictício), dizendo ser Supervisor Espiritual. “Ih pensei: é daqueles afetados, pelo jeito”. Pediu o livro e adentrou uma sala pequena e pôs-se em transe mediúnico. Estranhando o modo pelo qual selecionavam livros olhei para o diretor que me atendera, ele me explicou:

— Aqui, quem escolhe o livro é Allan Kardec…

— Allan Kardec? Cara, não é livro nem para Manoel da Silva, será avaliado por Kardec?

O diretor confirmou com a cabeça; e eu:

— Não foi Kardec nem celebridade nenhuma quem escreveu a obra, fui eu mesmo… E não quero nada de graça… Quero fazer orçamento; sou de Anápolis, Goiás; e lá eu trabalho num Jornal feito a tipos, ainda… Letra a letra…

O diretor botou o indicador na boca e fez psiu para mim. Resolvi comportar como gente grande e fiquei quietinho no meu canto. Quando o homem saiu de sua sala cuja claridade era quebrada por uma penumbra, entregou os meus originais ao diretor e disse:

— Não é de Emmanuel…

— Não, “seu” moço, é meu. Tem nada de Manoel aqui. Eu disse que não é livro psicografado… São crônicas que eu escrevia para a Rádio Cultura. São inspiradas, não sei por quem…

Sabem esses religiosos semelhantes aos antigos protestantes, piegas, muito esmerados no trato, que falam com doçura, quase pedindo desculpas?… Pois é… Os dois estavam tão fora do normal que eu achei que eles tinham pressa que eu saísse, pois nem me perguntaram quantos exemplares eu queria nem fizeram o orçamento do milheiro. Estenderam-me as mãozinhas e me disseram:

— Vai com Deus, meu filho!

Vão pensar que é exagero ou brincadeira minha. Mas foi a mais pura verdade. E foi assim. Ou eu não os entendera em nada. Saí dali, dirigia-me ao hotel quando passei em frente uma porta onde estava escrito EDICEL — livros — numa sobreloja, à Rua Maria Paula, 181. Entrei e encontrei a Editora Cultural Espírita.

Avancei. Mas pareceu-me que um anjo veio ao meu encontro, pois fui recebido por um senhor tão simpático que me deu vontade abraçá-lo; era como se fosse um avô da gente: baixo, cabeça branquinha, terno cinza, sorriso bondoso e olhar manso; educadamente ofereceu-me uma cadeira, água e se prontificou a me atender!

— Pois não, meu filho. Isso foi em 1969.

— Por sugestão de uma amiga, vim de muito longe pra ver por quanto o senhor faz mil livros desses originais.

Ele leu alguns trechos e disse: vai ter boa aceitação popular. Deu-me o preço e disse: você paga xis por mil livros; mas se eu gostar da obra publico logo 10 mil e lhe mando 3000 exemplares.

— O senhor fica com sete mil?

— Sim. Gostou?

— Não estou nem acreditando. Se o senhor aprovar os originais, me passa três mil exemplares e aumenta a tiragem para 10 mil? Isso mesmo ou estou “obsedado”?

— Isso mesmo!

— Negócio fechado.

Era o Senhor Gianini. Não lembro o sobrenome.

Entreguei-lhe o pagamento junto aos originais e me pus de pé pra retornar, visivelmente feliz e surpreso.

O homenzinho, — hoje, relembrando-o, vejo o quanto eu me pareço com ele, fisicamente — também feliz e sempre com bondoso sorriso, aceitou apertar minha mão na despedida, enquanto eu o agradecia. Acompanhou-me até à porta de saída e desejou-me boa viagem.

Lá fora eu pensei: “Eu devia morar em São Paulo, tudo, aqui, é perto, bom e rápido”.

Voltei para casa. De novo em Anápolis.

Era tanto o trabalho que me esperava que, após excessiva labuta, fui parar de cansaço no hospital Santa Paula, tão esgotado. Mas concretizei grande parte do meu ideal. O Dr. Elias Abraão, um médico de Deus, excepcional e grande amigo, de descendência Sírio-Libanesa tinha a mania de, vez ou outra, internar-me no hospital. E estava eu lá recebendo soro “só pra você descansar, não que esteja doente”. Dizia ele. Tudo bem. É amigo. Não cobra nada. Posso sair a qualquer hora…

Muitos dias tinham se passado depois que eu viera de São Paulo — até o momento de estar ali, no hospital.

Dormia, quando acordei com um toque no peito. Fui ver, era um livro.

Olhei-o. Era lindo. Capa colorida. Com o título “Há Tantas Flores Pelos Caminhos”. Quem o tinha jogado no meu peito foi o grande irmão Sidney de Paula Silveira, hoje médico oftalmologista, de Brasília, a quem eu chamava de “cinco”, em função dos nomes combinados de uma turma de irmãos e primos que frequentavam as nossas sessões.

— Uau, cinco! Os meus livros? Eu nem pensava mais neles!

— Pois é! Respondeu o Sidney — Chegaram 3000 exemplares, no Lar.

Levantei-me, entrei nos meus farrapos e deixei o hospital, abraçando meu amigo Dr. Elias Abraão.

Muito tempo se passou.

O livro tinha ganhado popularidade em meio aos espíritas. Tornou-se conhecido no movimento. Depois veio o romance “O Nonô de Naná”. Outra grande tiragem. Este publicado pela ADN, editora do Rio de Janeiro.

Mas eu estava lavando o salão de festas do Lar da Criança HC, auxiliado pelos meninos que, nestas horas, aproveitavam para se deslizarem na água de sabão espalhada no piso e se esbaldavam a valer; meninos ajudam — e quem os rejeitam é louco! — Pois se estava uma turma de 03 vinha outro como bola de boliche e punha os de pé no chão; era uma farra, o salão ficando limpo, e todos felizes. Foi nesta hora que o Paulo Diniz, conhecido livreiro de Anápolis, espírita, entrou na sala seguido por um homem. Vieram ao meio do salão onde eu estava e o Paulo Diniz disse:

— Iron, este irmão é de São Paulo, da Editora Allan Kardec, o Saulo.

Logo me lembrei dele e brinquei:

— Ah, quanto tempo! Você, então, é o assessor do Allan Kardec? Vai, Paulo — pedi ao confrade que o acompanhava — mostrar a casa pra ele; e mostre as crianças.

— Ele quer falar com você. Iron.

— Tudo bem. Logo terminamos esta limpeza aqui e conversaremos; hoje, mais tarde, terá uma festinha neste local e preciso deixá-lo brilhando. Vão! Vão conhecer a casa.

E os dois entraram para o interior da entidade e somente bem mais tarde, depois de terminado o evento que ocorreria no salão, é que fui cair na real:

— Caramba! Eu me esqueci do Paulo Diniz e do Saulo, que estiveram hoje aqui!

Fiquei sabendo depois que eles disseram que voltariam outra hora, e nunca mais apareceram. Não sei por que. Penso que tinha o Saulo amadurecido. Deve ter entendido que Espiritismo não deve ser protagonizado por piegas, que toda boa obra, mesmo que simples, não precisa ser psicografada porque a psicografia tem suas graduações: bem sutis muito intuitivas ou até clarividentes.

— Ele mandou dizer-lhe que veio pedir desculpas a você, e que ficou surpreso de o seu livro ter alcançado tão grande aceitação.

— Que mais?

— Só isso. Terminou a secretária Nilza.

É assim mesmo. Os recados preciosos de que necessitamos, não precisam chegar por Sedex nem portador especial; chegam também pelas mãos de travessos moleques ou em lombos de jegues.

Rsss, é isso.

 

(Iron Junqueira, escritor)

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