Opinião

Macarrão com açúcar, uma delícia!

Diário da Manhã

Publicado em 6 de abril de 2017 às 01:58 | Atualizado há 8 anos

Muita coisa tenho pra contar: umas, boas; outras, que recordo apenas para lembrar as cabeçadas que dei na vida, maiormente na época de estudante nas Alterosas, com um empreguinho roscofe na “Casa Palhares”; meu irmão mais jovem um ano e meio, que era tratado por Ié, teve melhor sorte: o antigo Banco da Lavoura estava admitindo menores, e ele embarcou nesse emprego, que era mais bem remunerado, podendo vez por outra comprar uma muda de roupa, e eu, que tinha mais ou menos seu porte, e como só tinha uma muda de roupa bate-e-torce, valia-me era das dele, que me deixavam mais bem apessoado, além de dar uma folga enquanto a minha era lavada.

Morávamos com dona Salomé, de Barreiras, que montou uma pensãozinha num velho sobrado na rua Pernambuco, esquina com a avenida Afonso Pena. Lembro-me até quanto cada um de nós pagávamos para comer e dormir. Seis mil cruzeiros por mês.

Confiado na roupinha mais apresentável do mano, e trabalhando na rua Caetés, a uns três quilômetros, estudando no Colégio Estadual, em distância bem maior, e como meu salário era de sete mil cruzeiros, sobrava a “astronômica” importância de mil cruzeiros para as outras despesas: condução, lanches e um cineminha, forante roupas, e eu nem podia pensar em adoecer, que não me lembro de ter tomado um comprimido de “Melhoral” ou de “Fontol”, e até hoje agradeço a Deus em ter-me conservado a saúde, que graças a Ele, ainda estou firme nos cascos.

No meu empreguinho eu fazia de um tudo, desde separar mercadorias, pregar rótulos nas embalagens até pegar a vassoura e ir assear a loja atacadista, entonado num macacão para não estragar minha roupinha de ver Deus.

Como eu me sobressaía na escola porque lia muito e vivia aparecendo nas aulas, comecei a olhar as meninas do Estadual com olhos mais cobiçosos, e consegui cair nas graças de uma mocinha, que parecia de boa procedência, com quem me encontrava nos intervalos de aula e na hora do recreio.

Mas a porqueira da mentira é que desgraça tudo: a mocinha queria fazer um mapa do que eu era, e quando perguntou se eu trabalhava, e eu deixei escapar que era filho do dono da loja, pensando que estava fazendo um vantajão.

E vejam no que deu: um dia, a tal menina, passando ali pela antiga Feira de Amostras, que ficava no início da Afonso Pena, e como a rua Caetés, onde ficava “Casa Palhares”, era ali pertinho, não sei o que lhe deu na telha pra dar com os costados justo na loja do meu trabalho. E quando ela chegou à porta, me pegou no flagra metido no surrado macacão varrendo cascas de jabuticaba na calçada. De filho do dono do comércio a faxineiro da loja era uma distância monstra. Foi a derradeira vez que vi a cara dela.

Mas estudante é uma nação de gente cheia de inventiva e nunca quer ficar por baixo. Descobri o “Restaurante Capri”, na avenida Amazonas esquina com a rua São Paulo, que nos sábados se enchia de estudantes pra comer o já famoso macarrão à bolonhesa, servindo meia porção, que estudante sempre anda liso e não podia pagar uma porção inteira.

O precinho era convidativo, sem se falar no tempero, e eu passava a semana já amolando os queixos, economizando o dinheiro do ônibus “Avenida” pra ir trabalhar, vir almoçar na pensão, e retornar ao trabalho para, no fim da tarde, correr de volta porque não dava tempo nem de tomar banho pra ir pra aula. Da rua Pernambuco para o Colégio Estadual tinha que pegar o ônibus “Santo Antônio”, que eu, de olho no macarrão de sábado, ia era na base do dedão. Com a economia de seis passagens de segunda a sexta, dava exatamente para comer o meio espaguete do Capri.

De tanto ir comer o macarrão aos sábados, fiquei sendo conhecido do garçom, cujo nome não sabia, pois ele nos tratava de “Parceiro”, e assim também era tratado. E de vez em quando ele uma dava uma demão na fome, fazendo uma meia porção mais generosa. “Parceiro” era um nordestino que falava alto, que lá do corredor de entrada do “Capri” a gente já o ouvia.

Um certo sábado, quando a loja fechou ao meio-dia, andei os cinco ou seis quarteirões que separavam a loja do restaurante, sempre durinho de gente, mercê do bom atendimento e do precinho camarada.

Cheguei, aboletei-me numa mesa desocupada que ficava mais pracolá, e “Parceiro” veio solícito, que nem cardápio trouxe, já sabendo o que eu comia, e perguntou se eu queria era o de sempre. E ele já trouxe um prato com o macarrão, com o molho à bolonhesa fumegando em cima, e foi buscar os talheres na cozinha.

Meu estômago estava roncando colado no espinhaço, de tanta fome. Enquanto ele foi à cozinha, eu vi que na mesa havia uma tijelinha com o queijo ralado e uma vasilha de plástico que supus ser farinha. E olhando aquele tantinho de espaguete que não iria nunca dar vencimento à minha fome, pensei: “Ninguém tá vendo mesmo… vou é inteirar com farinha”.

E unindo o pensamento à ação, puxei aquela lingueta da cumbuquinha de plástico e despejei em cima do macarrão. Só que não era farinha… era açúcar.

E quando eu acabava de despejar um monte de açúcar, ele chegou com os talheres e, vendo minha situação, indagou, naquela voz alta que chamou a atenção da turma de estudantes que atopetava o restaurante:

– Uai, “Parceiro”, cê gosta de macarrão com açúcar?

Eu, muito descabreado, mas sem querer perder a pose, só pude responder:

– Você nunca comeu, não? Não sabe o que tá perdendo!…

Tive que comer o macarrão doce a muque, pra não morrer de fome.

 

(Liberato Póvoa, Desembargador aposentado do TJ-TO, Membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, Membro da Associação Goiana de Imprensa (AGI), escritor, jurista, historiador e dvogado, [email protected])

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