Opinião

Mentiras e verdades sobre o “excesso de medicamentos” para hiperatividade no Brasil

Diário da Manhã

Publicado em 11 de março de 2016 às 02:07 | Atualizado há 9 anos

1- O que é o metilfenidato, Ritalina, principal medicação para hiperatividade ?
Resposta: É um medicamento da categoria dos psicoestimulantes, anfetaminoides, derivado estruturalmente, quimicamente, da feniletilamina, núcleo precursor das anfetaminas.
É medicação que aumenta os níveis catecolaminérgicos, dopaminérgicos, norepinefrínicos, sobretudo sobre a convexidade dorsolateral e também orbital frontal, melhorando as funções executivas do lobo frontal, inclusive a concentração, atenção, perscrutação, isso nos indivíduos que têm algum problema psiquiátrico a serem tratados, p.ex., transtorno de hiperatividade e déficit de atenção ( TDAH) .
A psiquiatria não aprova seu uso, muito corrente hoje em dia, para “ficar acordado” (caminhoneiros, estudantes), e nem para “aumentar o potencial intelectual” de pessoas normais.
2- Como é feito o diagnostico para as pessoas que sofrem do TDAH?
R: É bem complicado, existindo tratados médicos complexos para isso, não dá para falar em poucas palavras. Só um médico com formação adequada em psiquiatria (o que geralmente exige um treino hospitalar intensivo de três anos ou mais, após o curso de seis anos de medicina) para fazer o diagnostico convenientemente. Por exemplo, como fazer um diagnostico diferencial entre uma hiperatividade/déficit atencional com uma criança com transtorno de ansiedade generalizada? Como separar um hiperativo/déficit atencional de um garoto com síndrome de Asperger com apresentação hiperativa? Ou de uma esquizofrenia infantil? Ou de uma doença bipolar de início na infância ? Ou de uma síndrome afasia-epilepsia de Landau-Kleffner? Glioblastoma temporal de evolução lenta com sintomas hiperativos? Distúrbios de vinculação na primeira infância? É muito complicado… Não basta ver uma criança agitada e/ou com déficit de atenção para dizer que ela, simplesmente, tem este distúrbio. Aliás, isto é causa de enormes e graves efeitos para a criança. Por exemplo, uma criança epiléptica, sobretudo com lesão frontal, ou do tipo parcial complexa com sintomas psiquiátricos, pode ser hiperativa, e se for medicada apenas como um transtorno de hiperatividade/déficit atencional pode ter piora de seu quadro convulsivo, vindo até a falecer, uma vez que muitas medicações para hiperatividade podem abaixar o limiar convulsivo. Infelizmente esse tipo de coisa é muito comum em nosso meio, onde a psiquiatria infantil é muito pouco conhecida, e a população, diante dos excessos cometidos (p.ex., “hiperatividade” diagnosticada por profissionais não-capacitados para tal, ou hiperativos não diagnosticados que vão para a rua, drogas, aids, crimes, etc), não tem a quem recorrer e não tem o hábito de recorrer. Por exemplo, vemos todos os dias crianças que foram hiperativas não convenientemente tratadas (p.ex., ficaram num Caps, apenas com acompanhamento psicológico, não psiquiátrico) e hoje já estão em situação intratável como adolescentes, p.ex., drogas, morando nas ruas, com AIDS,etc. As famílias, os brasileiros de um modo geral, não têm muita noção de que isso foi um “erro do profissional”, que isso foi um “erro do sistema de saúde” e que caberia, portanto, denúncia, processo, condenação, indenização, etc. No Brasil é muito triste constatar que, uma família dessas, com um problema grave desses (p.ex., um garoto de 15 anos, com aids grave, que atendemos estes dias) não tenha a menor noção, ou o menor interesse, da responsabilização de quem protelou ou impediu o tratamento.
Por outro lado, existe sim uma hipermedicalização do problema, sobretudo por parte de profissionais não adequadamente preparados, ou seja, que não receberem treinamento, prática, teoria, na área da psiquiatria infantil. Estes dias mesmo atendemos um garotinho, medicado com ritalina, cujo problema estava com a mãe, extremamente agressiva, fria, rejeitante, e que falava a todo momento, durante a hospitalização, que queria mesmo era ficar livre do filho. Neste caso, retiramos a medicação e iniciamos um processo psicoterapêutico intensivo, com a mãe, o padrasto (também já contaminado pela frieza e agressividade da mãe) e o paciente.
Isso, de hipermedicalização, evidentemente, acontece, mas, de um modo geral, a regra, ou seja, a maioria esmagadora dos casos, é a falta de diagnóstico e de tratamento adequados, caminhando todos (os casos mais graves) para as drogas, delinqüência, psicopatia, agressividade, assaltos, aids, acidentes, etc.
3- Existem efeitos colaterais para pessoas que usam a medicação e sofre dos transtornos?
R: Como toda medicação, só deve ser usado por quem é doente e por quem tem diagnostico e acompanhamento médico, no caso psiquiátrico (que é o profissional médico mais capacitado para tanto). Pessoas que não são doentes, que usam a medicação correm riscos elevados para várias doenças: hipertensão, infarto do miocárdio, convulsões, crises de ansiedade, AVC, depressão, psicose, desengatilhamento de “esquizofrenia” latente, bipolaridade latente, obsessão latente, tiques, doenças cardiovasculares (p.ex., arritmias, picos hipertensivos), desencadeamento de fobias, ulcera gástrica.
4- O tratamento com a medicação é contínuo?
R: Em alguns casos recomenda-se a interrupção no fim de semana, para não afetar alguns parâmetros hormonais (curva pôndero-estatural, anorexia, hiposomatostatinemia, etc) de algumas crianças. Isto tem de ser visto e discutido com o médico assistente. Em muitos casos a hiperatividade/déficit atencional melhora na fase adulta, em outros casos, sobretudo aqueles associados à doença bipolar, o que perfaz quase 80% deles ao contrário, a doença pode piorar, aí o metilfenidato não faz mais efeito. É preciso instituir um novo tratamento para a doença de base, no caso a doença bipolar.
5- A Ritalina tem algum resultado significativo para pessoas que não tem nenhum tipo de transtorno?
R: Pode diminuir o sono, o apetite,dar uma “sensação cafeínica” de mais energia, melhora do performance cognitivo. No entanto, ao mesmo tempo, pode haver, nas pessoas normais, um aumento da ansiedade, e uma superficialidade maior dos processos cognitivos (ou seja, podem até darem a impressão subjetiva para as pessoas normais que a usam de estarem com processos mentais mais fortes, ativos, rápidos, quando, na verdade, podem estar é mais superficiais, deixarem escapar detalhes de profundidade relevante).
6- Por que existe essa facilidade em comprar o remédio?
R: Na verdade, a afirmação me parece equivocada, pois a medicação está entre os remédios mais difíceis de serem adquiridos; só com receita amarela, controlada, só com registro do médico na vigilância sanitária. Mas muitos pegam receitas com amigos, ou pegam o remédio de quem realmente tem necessidade de usar. Eu mesmo já tive pedidos de vários alunos de medicina (classe com a qual eu lido muito) para que lhes prescreva ritalina para passarem as noites em claro, estudando.
7- Pessoas que fizeram o uso do remédio de forma errada relataram insonia durante meses após o interrompimento da droga, tem alguma forma de burlar esses sintomas?
R: Não que eu saiba. O surgimento, cronificação, piora, de insônia, pode ser indício de que a medicação possa ter desengatilhado uma tendência ansiosa, bipolar, depressiva, que a pessoa tinha, subjacente, e que agora se manifesta.
8- Relatos de quem usou apontam que eles tiveram desempenho superior quando tomaram a medicação, e também conseguiam ficar acordados por dias sem aquele efeito de ressaca, isso é realmente conseguido com o medicamento ou apenas um efeito placebo?
R: Pode ser um fato. O processamento executivo frontal fica mais rápido , no entanto isto não quer dizer que fique necessariamente melhor. Às vezes é até o contrário, fica mais rápido, mais vigoroso, mas de qualidade pior. Só em pessoas realmente doentes é que há melhora na rapidez e na eficiência. Em pessoas não doentes pode haver aumento da rapidez, da elongação do esforço, mas isso em detrimento da eficiência dos processos de raciocínio. Por exemplo, o raciocínio fica ou mais superficial ou “tão profundo” que ninguém o entende bem. Uma obra de Sartre, O Idiota, sobre o escritor Gustave Flaubert, escrita sob uso de anfetaminas é extremamente prolixa, as vezes de uma profundidade que só ele entende (e olhe lá), repetitiva, e muitas vezes, superficial (p.ex., fica repetindo lugares comuns retirados da psicanálise, para explicar a psicologia de Flaubert). Nos últimos anos, quando Sartre usava mais anfetaminas, os próprios críticos são unânimes em dizer que sua obra se deteriorou muito. Foi ficando hermética, prolixa, e, ao mesmo tempo, pouco substancial.
9- Se o senhor tiver algo a mais para discorrer sobre o assunto fora o que foi perguntado, fique a vontade para falar, sua visão médica é muito importante para a matéria.
R: Em resumo, a doença da hiperatividade na infância, na verdade, no Brasil, é subdiagnosticada, é sub-medicada. Há vários fatores, entre eles a falta de especialistas para tanto, que são os psiquiatras infantis. Muitas crianças são diagnosticadas erroneamente , por não especialistas. Em outros casos acontece o contrário, p.ex., a criança com hiperatividade grave fica indo num serviço público de saúde, fica indo numa psicóloga, ou em um médico não-psiquiatra, que, muitas vezes, “ou dizem que ela não tem nada”, ou que o “problema é dos pais”, ou só fica na psicoterapia,não é vista por médico psiquiatra. Alguns médicos que se julgam especialistas em psiquiatria infantil, sem terem feito a especialidade, arvoram-se mesmo a prescrever a droga, mesmo sem ter uma consciência muito profunda do diagnóstico, do diagnóstico diferencial, da psicopatologia subjacente, das relações familiares, etc. É um tipo de “reducionismo”. Já vi muitíssimas famílias rejeitarem o psiquiatra (“médico de doidos”, “não vou levar meu filho num hospício”, “ele precisa é de quem entende de cérebro e não de loucura”, “só sabe dopar”, etc), preferindo levá-los em pediatras ou neurologistas, ou seja, especialidades mais “neutras” ou glamourosas. Depois o problema vai se agravando, a criança vai para a rua, para a delinqüência, para o crime, para as drogas, para a aids, como mostrei acima, transformando-se num verdadeiro psicopata. Em nosso serviço hospitalar de psiquiatria de adolescentes, pegamos muitíssimos desses casos, com atraso de diagnostico e tratamento, que aí já é muito tarde, já não dá para fazer mais nada. A psicopatia e a toxicomania já estão enduradas, dificilmente mobilizáveis, o paciente já está com sequelas cerebrais, já tem lesões cerebrais por acidentes, traumatismos, infecções oportunistas ou por aids, etc. Aproximadamente 80% desses zumbis-do-crack que vemos hoje nas ruas passaram por este processo. Então, se, ao mesmo tempo, há má indicação de ritalina, para usos inadequados, há também, em proporção muito maior, subindicação, subnotificação de diagnósticos. Ritalina, ou qualquer outro tratamento para hiperatividade (há muitos outros), não é para ser indicado para crianças mal-criadas, mal-educadas, agressivas ou inquietas por falta de boa educação familiar, por falta de boa pedagogia, por falta de amor de mãe e de disciplina do pai. Tem de ter indicação adequada, e para isto, só um especialista em psiquiatria , de preferência infantil (algo muito pouco disponível no Brasil). Não estou puxando sardinha para o meu lado, estou apenas mostrando a complexidade de um problema que não vem sido tratado com a devida profundidade médica-profissional. Alegar que eu estou puxando a sardinha para o meu lado, ao meu ver, é a mesma coisa de alegar que um “neurocirurgião” está puxando a sardinha para o lado dele quando fala que a “única opção para o tratamento de um meningioma gigante sobre a asa esfenoidal é a neurocirurgia”. Como diz o H.L. Menckes, “para questões muito complexas há sempre soluções fáceis, rápidas, simples e… erradas”. Acho que na questão da hiperatividade e dos psicoestimulantes aplica-se bem isso.

(Marcelo Caixeta, médico psiquiatra)

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