Na encruzilhada da moral, o bem embala o mal
Diário da Manhã
Publicado em 21 de fevereiro de 2018 às 21:57 | Atualizado há 7 anos“A coisa sagrada é aquela que o profano não deve tocar, e não pode tocar com impunidade”
(Durkheim)
O verdadeiro conhecimento deve ser comunicável, e, na perspectiva feminista, há que focar nos efeitos que provocam o gênero quando da interpretação e teorização sociológica, o que não é novidade por ser teoria, há tempos, proclamada pelas mulheres engajadas na luta por igualdade, equidade e ocupação de espaços delimitados por uma sociedade capitalista pós-moderna efêmera, violenta e volátil (Collins). A violência santa determina uma parcela social favorecida a nível individual e social, também, quem é profano. Victoria Lee Erickson discute no livro “Onde o silêncio fala: feminismo, teoria social e religião” o que para Durkheim representa um dos papéis da violência na religião, o qual aparece representado no conjunto de crenças e ritos, coisas reais, nascimento e morte.
Marta e Maria figurariam – na formação cristã – como modelos antitéticos, para os quais há pouca possibilidade de convivência dialógico-construtiva: “Carece indagar se existem somente as possibilidades extremas, como aquela que é questionada, a que se esforça; outra, a elevada a silenciar, protótipos ou estereótipos que contribuíram para uma construção equivocada acerca das diferentes possibilidades e dons que precisam interagir e se fazem presentes, muitas vezes, não apenas entre pessoas, mas também dentro da própria pessoa. De que adianta Maria assentada, o tempo todo, aos pés de Jesus? Que discípula é essa que nem sequer fala? De que serve Marta ansiosa e dispersa por causa da sobrecarga e expectativas mais internas que externas de poder e ter de fazer tudo? Que Jesus é esse que aqui se apresenta?” (Reimer, 2010).
A religião é, portanto, uma maneira de conhecer a realidade e poder refleti-la por classificar, estabelecer e sacralizar a identidade, além de definir o homem e seu espaço no universo (MOL, 1976). A doutrinação considera controlar identidades socialmente concebidas, manter a ordem, garantir a identidade futura e a sacralização “modifica, obstrui ou (se necessário) legitima a mudança” (idem) onde o sagrado continua a reaparecer na realidade moderna estabelecendo distinções. As crenças e rito religiosos determinam o que é sagrado ou profano, excluem. Para Durkheim as pessoas entendem o presente compreendendo o passado e a religião contribuiu na formação do intelecto por ser algo iminentemente social, pois a reflexão religiosa é algo mais que a soma de pensamentos individuais já que na religião está a origem da sociedade e moralidade do conhecimento.
É importante lembrar que “a distinção entre o sagrado e o profano é encontrada em um pensamento que tem consequências materiais” (Erickson, 1996, p. 32) como a manutenção da ordem – atividade sagrada – pelo viés da divisão social do trabalho. Para a sociologia religiosa de Durkheim há o entendimento de que “o sagrado” é genericamente masculino e o “profano”, genericamente feminino (p. 34), fato que trás uma interpretação implícita da violência contra as mulheres. O bem e o mal nada mais são que – dentro da categoria da moralidade – duas espécies opostas da mesma classe (Durkheim, 1965, p. 53-54). A vida religiosa não anda com o profano a mesma trilha, é nessa encruzilhada que o sociólogo interessa em seus estudos, atrás de compreender a irracionalidade do profano e a racionalidade do sagrado – um mistério e dualismo que permite a distinção entre magia e religião, sempre uma tensão recíproca.
Os indivíduos “utilizam” a magia, mas esta não cria para eles uma comunidade moral, porque “não existe Igreja na magia” (p. 37). Cada indivíduo carrega dois seres a coexistir dentro dele, o totem coletivo faz parte da condição civil de cada um enquanto regra hereditária a qual aceita a ideia do totem do clã que existe sem o individual, neste caso, o indivíduo o aceita como seu por ser este símbolo de “deus” tornado um só junto com a sociedade (Durkheim) arena onde tanto a sociedade totêmica quanto seu deus usam de violência: “ Os homens enxergam agora mais […] tornam-se diferentes […] só conseguem se satisfazer através de ações violentas, heroísmo sobre-humano, barbarismo” (1965, p. 239-41), forças com origem nas experiências coletivas que criam “heróis e assassinos” a partir de uma base moral fora do eu, quando nações inteiras podem ser convencidas por rituais religiosos que a violência sagrada é justificada (p. 250). Exemplos dessa barbárie a quase destruição dos judeus por Hitler, a escravidão nos Estados Unidos, a relação abusiva macho x fêmea, ou, os abusos do marido contra a esposa.
O poder moral – que é a sociedade – existe porque gera um deus poderoso do qual o adepto depende, pois “[o culto] não tem o objetivo único de fazer com que os sujeitos profanos se comuniquem com os seres sagrados […]” (p. 388). Este poder ou força religiosa dá às pessoas o controle das atividades e respostas sociais através do pensamento abstrato, quando, por trás da religião repousa a vontade de excluir o profano, o feminino, por ser a religião redutível a grupos exclusivos que dominam o excluído, por ser ela a ferramenta da exclusão, ou a religião que faz o homem. O ser social deixa de pertencer ao coletivo feminino passando a integrar a comunidade/sociedade dos homens, onde um deus exige controle e sacrifício, exclusão do profano, mesmo que sob o viés da violência. Este fenômeno alimenta a religião cuja vida social exclui as mulheres e as separa, pelo viés da transcendência destinada ao domínio de dois mundos, o ideal moral e o mundo ordinário.
Na contramão do discurso sagrado e machista, Lou Salomé foi, de fato, uma mulher muito à frente de seu tempo. Um de seus pensamentos mais famosos – extremamente atual – apesar de escrito há um século: “Ouse, ouse… Ouse tudo! Não tenha necessidade de nada! Não tente adequar sua vida a modelos, nem queira você mesmo ser um modelo para ninguém. Acredite: a vida lhe dará poucos presentes. Se você quer uma vida, aprenda a roubá-la! Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é, aconteça o que acontecer. Não defenda nenhum princípio, mas algo de bem maravilhoso. Algo que está em nós e que queima como o fogo da vida!” (Guias de Filosofia), contrariando o poder sagrado que celebra vidas fragmentadas, contaminado pelo profano numa arena onde a purificação, o sexo, a força e a violência caminham fazendo sombra um ao outro.
Esta segregação sustentada pela força e violência destrói a totalidade da sexualidade, cria tensão recíproca entre dois sexos numa sociedade na qual o casamento vem a controlar os relacionamentos individuais, negando acesso a outras formas de relacionamentos, o que afeta os gêneros de uma maneira diferente. De acordo com Durkheim, onde “a mulher é mais um produto da natureza do que um ser social” (1951, p. 385), objeto sem alma nem corpo, espírito ou força, e que a poetisa Cora Coralina contradiz ao dar à poesia vida e coragem ao referenciar seu labor diário em busca de sobrevivência e representatividade: “Eu sou a mulher mais antiga do mundo, plantada e fecundada no ventre escuro da terra” (1985, p. 109, apud Richter, p. 57). “O casamento “regula a vida da paixão”, criando “um equilíbrio moral que favorece o marido” (Durkheim, 1951, 270). É preciso que um dos sexos seja necessariamente sacrificado, e a única solução é escolher o menor dos dois males?” (idem, p. 384).
E o autor prossegue: “Essas ‘tendências desinteressadas’ constatam que as mulheres não eram ‘fracas’, mas que se tornaram assim com a ‘progressão da moralidade’” (1984, p. 18). Um espectro da divisão social do trabalho aponta, para Durkheim, que “o trabalho da mulher e seu papel está amplamente relacionado com seu estado inferior e menos desenvolvido, estado este que torna possível o casamento” (p. 64). Esta moralidade punitiva expõe outro fato: “Bater numa criança é permissível quando o objetivo é o ensino da importância moral” (1973a, p. 201). A solidariedade orgânica requer um sistema institucionalizado que imponha boa fé e a abstenção da força e da fraude no contrato (p. 67), da antinomia entre indivíduo e a sociedade, sagrado do profano, masculino do feminino. Um mundo onde as brincadeiras dos meninos são mais “pragmáticas” que as das meninas tolerantes, conciliadoras, inovadoras.
A unidade mãe e filha permite que as mulheres sejam seres individuais reais umas para as outras, enquanto o “drama do pai” as estigmatiza como objetos (p. 74), de acordo com Marx, a opressão das mulheres material e histórica, e, mesmo dentro da classe proletária, no mundo ocidental, o sexo conduzido no poder da dominação pela masculinidade, sexualidade, violência, morte, num mundo onde a mulher representa a antiga religião (pré-totêmica) das forças primitivas, o homem, a razão, a lei e a ordem. O homem se baseia no erro negativo, estupro, homicídio sexual e pornografia (Hartsock), as mulheres no eros positivo, na energia, capacidade potencial (p. 77). “Na reprodução, o esperma e o óvulo se unem para formar uma nova entidade, mas eles o fazem a partir da morte e do desaparecimento de dois seres separados” (Hartsock, 1983, p. 244).
Os animais, de acordo com Durkheim, “só conhecem o mundo, os homens conhecem o ideal”, por razões de poder e dominação, quando os homens, no intento de reproduzir o mundo ideal, satisfazem suas necessidades, sem saber que o mundo só pode existir se fizer a partir da satisfação natural e animal, segundo Marx Weber, “as regras devem governar os desejos” (p. 84). A religião é o modo pelo qual a identidade masculina está sacralizada. Ela “devolve a totalidade às vidas dilaceradas pelas mudanças” (MOL, 1976, p. 95). Os animais, de acordo com Durkheim, “só conhecem o mundo, os homens conhecem o ideal”, por razões de poder e dominação, quando os homens, no intento de reproduzir o mundo ideal, satisfazem suas necessidades, sem saber que o mundo só pode existir se fizer a partir da satisfação natural e animal.
Segundo Marx Weber, “as regras devem governar os desejos”. Cem por cento dos homens – (des) humanizados – não conseguem utilizar 10% da sua cabeça animal, não percebem o fenômeno. Algo que pulula em ansiedade – da janela ambiental, por exemplo – questão de vida e morte que também o capitalismo tomou enquanto lucro: questão da água, da qual somos feitos em cerca de “70%, ainda que tenhamos composição de terra e também partículas subatômicas e ondas eletromagnéticas fazem parte de nós e nos interligam com toda vida no planeta e no universo” (BOFF, 2000 e 2009, apud Richter 2010, p. 31). Em seu modo e esforço de criar e sustentar a força violenta e dominadora da sociedade dos homens, a religião transformou a alma. O capitalismo não reconhece o direito nem a necessidade básica primordial da natureza que a tudo dá vida, transforma e retorna às cinzas. Este processo não natural, mercadológico, transmuta, recria e copia na ânsia do lucro e sua acumulação, sem levar a sério as novas descobertas no campo da física e da biologia enquanto questões matemáticas e exatas, de vida e morte que despertam certezas e dúvidas.
Deveríamos nos conscientizar e talvez nos tornar mais aptos/as e hábeis para uma solidariedade primária substancial com todas as formas de vida. Questão de gênero que recorre à economia, cultura, etnicidade, religião e posição política, “a práxis solidária na construção dos saberes e fazeres pode diminuir ou transformar o acelerado processo de desintegração da natureza num processo de arrependimento, cuidado e reverência diante da vida” (Richter, p. 31), vida esta que inclui a questão de gênero, de sexos, identidades, poder, representatividade, submissão ou luta da sociedade pós-moderna que determina representações e relações líquidas, uma coletividade liberta a partir do erguimento de muros e do clamor da segurança que transforma a gaiola das liberdades no paraíso, o que Nietzsche chamou “a grande mentira” entre as massas e elite, dominados e dominadores, ato político de filtrar as vozes, a partir da história, e reclassificá-las como grupo sem voz. Antes de estabelecerem-se como indivíduos com voz e alma, continuam a falar no escuro.
E o pulso, ainda pulsa!
(Antônio Lopes, escritor, filósofo, professor universitário, mestre em Serviço Social e doutorando em Ciências da Religião/PUC-Goiás, mestrando em Direitos Humanos/UFG, membro do Conselho Editorial da Kelps Editora)
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