Nem reis, nem três – estudo sobre os “Reis Magos”
Diário da Manhã
Publicado em 6 de janeiro de 2018 às 22:38 | Atualizado há 7 anos“Quando nasceu Jesus, em Belém de Judéia, sob o reinado de Herodes, uns magos do Oriente se apresentaram em Jerusalém e perguntaram: ‘Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Porque vimos sua estrela no Oriente e vimos adorá-lo.’ Ao saber disso, o rei Herodes ficou desconcertado e com ele toda a Jerusalém. Então reuniu a todos os seus sumos sacerdotes e aos escribas do povo para indagar em qual lugar devia nascer o Messias. “Em Belém da Judéia, lhe responderam, porque assim está escrito pelo Profeta:
“E tu, Belém, terra de Judá, certamente não és a menor entre as principais cidades de Judá, porque de ti surgirá um chefe que será o Pastor de meu povo, Israel”.
Herodes mandou chamar secretamente aos magos e depois de averiguar com precisão a data em que havia aparecido a estrela, os enviou a Belém, dizendo-lhes: “Vão e informem-se cuidadosamente acerca do menino, e quando o tenham encontrado, avisem-me para que eu também vá a render-lhe homenagem. Depois de ouvir ao rei, eles partiram. A estrela que haviam visto no Oriente os precedia, até que se deteve no lugar onde estava o menino. Quando viram a estrela se encheram de alegria, e ao entrar na casa, encontraram ao menino com Maria, sua mãe, e prostrando-se, lhe renderam homenagem. Logo, abrindo seus cofres, lhe ofereceram presentes: ouro, incenso e mirra. E como receberam em sonhos a advertência de não regressar ao palácio de Herodes, voltaram a sua terra por outro caminho” (Mateus 2,1-12).
Já não é possível aproximar-nos de um texto das Escrituras com atitude inocente. A dúvida e a suspeita como metodologia interpretativa é sumamente útil para compreender e interpretar os silêncios, as ausências e as ênfases de um texto. Todo escrito tem sempre uma dupla função de revelar e ocultar, de induzir e levar os seus leitores em uma determinada linha de pensamento. Não há escrito algum da Bíblia que seja inocente…
Se analisarmos a intencionalidade de todo o Evangelho de Mateus, podemos colocar este fragmento sobre a visitas de “uns magos do Oriente”, em uma perspectiva maior e mais ampla. Aqueles que estavam destinados a ser os instrumentos principais do processo de libertação e inclusão iniciado por Deus, por problemas de interpretação das Escrituras, não podem compreender esse processo. A forma em que estão lendo a história da salvação lhes fez cegos e surdos aos acontecimentos do Natal. Não podem compreender a forma paradoxal em que esse Deus que reconhecem e louvam, adota para manifestar-se. Estamos novamente diante de um problema hermenêutico. O problema é a forma em que utilizamos as Escrituras para interpretar a realidade do presente de Deus.
Já havíamos feito dos pastores, grupos sumamente suspeitos e estigmatizado pelos grupos de poder intelectual, religioso e político de seu tempo, um idílico e lírico grupo de bons rapazes que lhe tirou todo o escândalo do fato de que sejam justamente eles os primeiros a receber a boa notícia do Nascimento do Menino Deus. Era necessário tirar-lhe todo aspecto escandaloso do relato para que não produzisse em nós nenhuma reação perigosa. O primeiro grupo que se aproxima do Menino de Belém e sua Mãe é um grupo considerado indigno de tal presente e um grupo marginal, realmente perigoso para a defesa dos valores tradicionais.
Agora é necessário fazer o mesmo processo com o seguinte grupo. Estes “magos do oriente” que se aproximam do presépio são também um grupo suspeito e estigmatizado por toda a tradição religiosa de todos os tempos. Leis, sabedoria e profetas, advertem contra todos os magos de então e de agora. Na realidade estes senhores são aqueles que hoje chamaríamos astrólogos e muito longe estão de ser astrônomos. Estão mais próximos dos ciganis que confeccionam horóscopos do que dos cientistas que estudam os mistérios do universo. Estes magos são também um grupo muito mal visto pelos que interpretam as Escrituras. Novamente o escândalo e para evitar essa lamentável situação os temos transformado em “reis” quando na realidade são uns charlatães suspeitos. Por mais que nas nossas reuniões sociais falemos dos signos do zodíaco, dos resultados de horóscopos diversos, que entretém nossas frivolidades, nenhum de nós levamos muito a sério essas predições e adivinhações. Exatamente o mesmo ocorria com os magos do Oriente e do Ocidente, do norte e do sul. Não são sábios, nem reis sábios, são magos com toda a carga que ainda hoje damos à esta afirmação. Muito bons para animar festas infantis, mas que nenhum de nós levaria muito a sério, exceto Deus, e de forma surpreendente.
Estas pessoas, cujo número permanece no mistério mais profundo e que temos feito que sejam três porque três são os presentes, procedem de um grupo que está fora da comunidade de fé. Outro escândalo. Deus se revela àqueles grupos que por diversas razões se colocaram ou os temos colocado fora dos limites da comunidade de fé, sobretudo os que defendem a ideia de uma “igreja única válida, fora da qual não há salvação”. Esta manifestação à estes magos manifesta que a salvação não exista mais além das 1hipotéticas fronteiras que temos estabelecido para limitar a ação de Deus aos grupos que consideramos politicamente corretos. Esta realidade pode ter uma força sumamente importante para fundamentar nossa ação pastoral, nossa reflexão bíblica e a construção de novos paradigmas teológicos. A ação de Deus vai mais além de tudo o que podemos compreender, e pior, mais além do que podemos tolerar.
Este texto do Evangelho justifica, fundamenta e nos compele a continuar nossa ação pastoral e de acompanhamento com todos os grupos vulneráveis ao estigma, a exclusão e a marginalização que produzem nossas próprias comunidades de fé quando fazem leituras incompletas e fundamentalistas das Escrituras. Este texto e a chegada destes magos suspeitos às ortodoxias do poder político e da sabedoria religiosa estabelecida, nos ajudam a explicar, fundamentar e continuar com nosso diálogo com todos os grupos excluídos e marginalizados por sociedades e comunidades de fé. É necessário recuperar o escândalo do Presépio e da Epifania e duvidar e suspeitar de leituras tradicionais que os esterilizaram.
O texto do profeta Isaías, citado no texto de Mateus, nos ajuda a demarcar esta reflexão. Ali se nos fala da situação de exilados que por diversos motivos se mantém longe do espaço de vida a qual pertencem. Ali se nos alenta a retornar àqueles espaços aos que pertencem e que lhes pertencem. Igualmente muitas das pessoas e grupos em situação de exclusão que vivem exilados de nossas comunidades, e em nossa ação pastoral queremos alentar-lhes a retornar e ocupar o espaço de dignidade que lhes pertence. Já não são mais “os outros e as outras”. Desde sempre, desde a Encarnação, desde o Presépio, desde a chegada dos suspeitos, estranhos e divertidos magos, todas as pessoas e grupos vulneráveis ao estigma e a desqualificação dos poderosos políticos e religiosos são dos nossos e das nossas. Rompeu-se para sempre essa forma estranha de falar “deles e nós”, “delas e nós”. O objetivo de todo este Evangelho de Mateus é mostrar-nos que Deus abriu, faz tempo, Seu Reino à todos e à todas em uma forma que vai mais além do que podemos compreender e aceitar. É o escândalo da radical inclusão de Deus. Disso trata este texto e isto nos custa reconhecer. Por isso e como uma consequência para proteger-nos, temos que adorná-los e pensar que não são pobres magos, mas sim reis e que além de ter sangue azul são generosos sábios.
Indubitavelmente estes magos estão um pouco confusos e eles mesmos não compreenderam totalmente a ação de Deus. Realmente os astros, a natureza, os poucos e bonitos rios e lagos que ainda não foram contaminados, nem os céus com ou sem nuvens, nunca podem revelar a verdadeira natureza da forma de Deus revelar-se. Nem astros nem flores nos podem revelar à este Deus que para revelar-se escolhe o esconder-se naqueles que nos é difícil aceitar. Se bem que a estrela não os dirige para o centro do poder político, eles igualmente e por uma concepção teológica tradicional, isto é, desde uma teologia da glória vão ao palácio porque pensam que quem vive ali conhece tudo e é bom, honesto e justo. É sempre essa tentação de buscar ser validados e reconhecidos pelos centros de poder. Esse poder busca o assessoramento de teólogos e estudiosos funcionais do sistema, e sempre os há em grande quantidade. Conhecem as Escrituras e citam-nas, porém não as entendem nem as aplicam. Seu conhecimento das Escrituras é um obstáculo a compreensão dos sinais dos tempos. A situação de exclusão e de vulnerabilidade em que vivem tantas pessoas e os grupos é um sinal dos tempos que exige compreensão desde caminhos não tradicionais. Para entender esta realidade devemos afastar-nos dos grupos de poder e caminhar para os presépios que a realidade concreta da vida das pessoas nos revela e onde se detiveram todas as estrelas de Deus que nos falam de uma nova forma de compreender Sua Vontade.
(Dom Antonio Piber, bispo vetero católico, diocese de Goiás e do Distrito Federal)
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