Nise da Silveira e a terapia da liberdade criativa
Diário da Manhã
Publicado em 13 de março de 2016 às 23:56 | Atualizado há 9 anos“Existir no corpo e no mundo é a chance que toda pessoa tem de realizar a experiência de se transformar no que É”. (Nise da Silveira). Nesta afirmação, a brasileira colaboradora de C.G. Jung refere-se à fragmentação da mente dos internos em manicômios, e de sua capacidade de curar a si mesmos. Dizia mestra alagoana que, mesmo estando mentalmente fragmentos, os internos estão aptos para atividades criativas nas quais tenham prazer imediato.
Tragicamente, no mesmo tempo em que vivia a pioneira da psicologia analítica no Brasil, a patologia social alastrou-se por todos os estratos da sociedade. Antes, a psicose do anticomunismo, da qual ela própria foi vítima, junto com outros intelectuais e escritores, como Graciliano Ramos, com quem dividiu uma cela, pagando pelo crime de pensar diferente, e de defender ideais de justiça social.
Certa vez perguntaram a Bispo, um artista interno da unidade psiquiátrica por ela dirigida, o que ele achava dos loucos. Ele respondeu com uma pergunta: “Você fala dos fala dos loucos de dentro ou os de fora do muro?”. Resposta perfeitamente lúcida. Por há mais loucura fazendo fora dos muros, do que dentro dos manicômios.
Tantos consumidores consumidos, tanta gente prisioneira da rede de desejos, enredadas na teia da busca de satisfação dos sentidos. Desejos que reproduzem a si mesmos, em velocidade espantosa, em ciclos expansionistas de ansiedade e insanidade coletivas.
Por isto é lícito, é válido, “inserido no contexto”, proclamar: “Ansiosos de todo mundo! Uni-vos no sofrimento inútil de vossa ansiedade automática! Tendes tudo a perder, e nada a ganhar! Em vosso olhar ansioso, pareceis ter sido acometidos pela doença de São Guido da alma aprisionada em ilusões vazias.
E assim quando mais tarde vos procure a morte, “angústia de quem vive, ou quem sabe a solidão, fim de quem ama”, não as vereis como indesejadas das gentes, e sim como divas e beldades desejadas, tantas vezes! Assim, caindo nas armadilhas do ego inflacionado, transformareis a vós mesmos em prisioneiros do medo e dos desejos vazios.
P.S. Se, no lidar com delírios de seus pacientes, a Dra. Nise da Silveira buscava fazer com que eles, no contato criativo com a arte, integrassem a restabelecessem a saúde de seu ego esfacelado, bom que o fez, naqueles tempos de paz conflagrada, correndo riscos e pagando o preço de ser até mesmo perseguida.
Não podendo assassiná-la como pessoa, tentaram destruí-la em campanhas contra o seu trabalho. E como nada disto adiantou, envenenaram seus cães, que ela tanto amava. Foi uma espécie de genocídio cultural e animal, uma tentativa de assassinar a liberdade, e de aprisionar a saúde de corpo, coração, mente e espírito que a Liberdade e o Amor trazem consigo.
(Brasigóis Felício é escritor e jornalista, membro da Academia Goiana de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Estado de Goiás)
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