Notebook, celular, relógio e óculos de sol
Diário da Manhã
Publicado em 6 de agosto de 2018 às 22:48 | Atualizado há 6 anosNo bairro chinês de Kuala Lumpur a noite é mais fresca e as comidas idem. A rua está lotada de turistas e cidadãos locais em plena harmonia. Apesar de conseguir identificar apenas a metade dos ingredientes servidos, peço um prato bem farto. Meu amigo também. É a primeira incursão dele no oriente. Está maravilhado. Tudo muito barato e acessível.
Já no quarto cada um de nós faz suas pesquisas sobre os mergulhos em plataformas submarinas, passeios em ilhas e tipos de transporte para aluguel. Nada demais, é nossa rotina. Algumas fotos são passadas para frente, em redes socias. Alguns textos são escritos. E o fuso horário vem cobrar sua parte. Dormimos as seis da tarde no segundo dia e acordamos as quatro da manhã.
Ao desligar o notebook de maneira inadequada, nem percebi o que houve. Mas ao tentar religar, além da lentidão habitual – criticada veementemente pelo parceiro, já que ele é um exímio TI – a tela apareceu com uma bela cor azul. Eu ri. Depois exasperei. Ainda bem que meus backups estavam em dia. Mas mesmo assim o desespero bateu. E tive que ouvir o clássico dos grandes amigos: “Eu avisei”.
Nunca achei a máquina pesada, mas a partir desse dia ela se tornou um fardo na minha mochila de ataque. Comecei a usar meu velho smartphone, de tecnologia Android e de uma marca sabiamente conhecida por não quebrar. Mas ao chegar na Monkey Beach, na ilha de Penang, ele quebrou. O computador inutilizado, eu parti para escrever à mão num diário e sem telefone na mão, isolei-me.
Os macacos roubaram meu lanche e o celular foi junto, apesar da árvore ser baixa e eu conseguir subir até perto deles, a queda – minha e do aparelho – foi fatal para a máquina. Dídimo perguntou, num misto de riso e preocupação, machucou? Só o orgulho, respondi. Culpa minha que a bateria estava estufada e entrou areia e a unha do animal deixou uma singular rubrica.
Deixando a Malásia em direção a Indonésia e a ilha de Bali, mais um ajuste no fuso horário, agora são onze horas. Adiantamos em três dias a chegada, pois incluímos o Arquipélago de Komodo e o seu imperdível mergulho com raias-mantas. E então, ao abrir minha pochete, também alvo de críticas – não pela utilidade, mas pela idade – e pegar meu canivete, ele abre em cima do botão debaixo do mostrador do relógio e o decepa.
Sem notebook, sem celular e agora sem relógio, fico a mercê do meu próprio tempo de do meu companheiro de viagens. E não é que ficou legal? Começo a acordar sem o alarme, e geralmente uma hora antes do Rafael – o que me propicia tempo para comer bem, meditar e alongar – e até achar bonita a minha esgarranchada letra cursiva. Não há pressa em apreciar o burburinho de Ubud e nem de fazer as curvas selvagens com a minha scooter vintage alugada no hotel mesmo.
Sem pressa para nada, lendo e escrevendo na hora que dá vontade. Dormindo e comendo de acordo com as necessidades, a viagem vai se tornando mais e mais agradável. Num fim de tarde saí para fotografar e passear e fiz trezentas fotos em trezentos metros. Tudo é relativo e o tempo também.
Nos deslocamos velozes por setenta quilômetros para uma praia com ondas perfeitas num dia ensolarado, meus óculos pequenos e seculares me protegiam do sol e vento. O colega com um celular na mão vendo GPS e seus insubstituíveis óculos escuros, que ele usa até de noite, ia rompendo o mar de motinhas no litoral balinês. Padang-Padang é sem noção. Um barranco enorme, areia branca e pasmem: um campeonato de surfe naquele dia.
Ao cair da tarde já saindo da praia, no alto do morro, um peso nas minhas costas. Um enorme macaco caranguejeiro rouba meu amado ray ban aviator e sobe para um galho inalcançável e mastiga todos os componentes de plástico. Até entregar para um filhote brincar e esse devolver para o guarda local em troca de um punhado de amendoins.
Volto a noite com vento no rosto. Fotos mil. Promessas de que o voo para Labuan Bajo será espetacular e o mergulho idem. Sem o contato com a tela, seja ela a minha frente ou nas minhas mãos, sem hora pra nada, e com o sol inclemente da linha do Equador fustigando meu rosto. E eu achando bom.
Estou livre, estou feliz e sem maiores compromissos. Meu amigão lista as compras que necessito fazer quando chegar. E aqui, agora, escrevendo nas teclas novas do meu moderníssimo notebook com o celular novinho ao lado, relógio para viajantes no pulso e o mesmíssimo óculos, eu não consigo parar de rir. Nada faz falta quando a alma está plena de atenção.
(JB Alencastro, médico)
]]>