NP – As consequências do foro privilegiado
Diário da Manhã
Publicado em 22 de novembro de 2016 às 01:28 | Atualizado há 8 anosEmbora eu tenha sido submetido a uma ação penal sob o manto do foro privilegiado, nunca escondi que sou visceralmente contra esta figura colocada pelo constituinte com o objetivo único e específico de blindá-lo legalmente, através da indiscutível manobra de deixar prescreverem os crimes, gerando previsível impunidade.
Eu gostaria mesmo de ter sido julgado por um juiz singular, que está mais aparelhado para instruir um processo, pois os tribunais foram criados para resolver litígios, e não para ter competência originária em matéria penal. E o resultado foi que, neste turbilhão em que a política me empurrou, estive com vários processos nas costas, e nos únicos que foram para o primeiro grau fui absolvido por absoluta falta de provas, e uma ação, que o ministro João Otávio de Noronha teimava em manter no STJ (certamente para dar satisfação àqueles que lhe encomendaram uma punição para mim), está com os supostos crimes prescritos. No CNJ, da mesma forma, pois, mercê de minha independência, fui vítima de nada menos que 25 procedimentos (isto mesmo: vinte e cinco!), que, pela mesma razão, foram todos arquivados.
No dia 4 de novembro último, assinei o artigo “O foro privilegiado é uma tapeação, uma fábrica de prescrição para perpetuar a impunidade”, onde faço uma análise, usando até o direito comparado, para provar minha tese. Mas parece que o legislador está começando a ver que o povo não é idiota, pois já tramita no Congresso a PEC 10/2013, cujo relator, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), já apresentou parecer favorável à extirpação deste absurdo do rol dos chamados princípios constitucionais. Com isto, o senador amapaense capitalizou prestígio.
Mas, aprovada ou não a emenda, um grande estrago já foi feito, e os bandidos abrigados sob esse manto já se beneficiaram. Pois vejam o porquê: em 1998, ainda presidente da República Fernando Henrique Cardoso, a Polícia Federal instaurou inquérito contra o governador de Rondônia na época, Valdir Raupp, para apurar uma série de “saques indevidos de FGTS pelo Estado de Rondônia”. O trâmite do inquérito exigia que ele fosse citado, mas o oficial de justiça certificou, em setembro do ano 2000, que ele “residia em Brasília”, fato notório, de conhecimento do Supremo, já que o acusado era senador.
Após diligências feitas pela PF, o Ministério Público requereu o arquivamento do inquérito, mas até agora não houve uma palavra do Supremo, e Raupp segue com o nome comprometido pela falha da enferrujada máquina estatal. Ele tem mais duas ações, que tramitam com a mesma velocidade. E isto é só um caso.
Existe um total de 84 ações penais em andamento no STF contra 53 deputados e senadores e estão, em média, há sete anos e oito meses sem um resultado. Desses processos, vinte e dois estão parados há mais de dez anos; outros trinta e seis superam seis anos, e quatro, entre eles três de Raupp, ultrapassam 15 anos sem decisão final. Vários inquéritos contra parlamentares chegaram placidamente à prescrição.
Quando um cidadão se elege deputado federal, senador, eu que seja um dos comandantes das Forças Armadas, membro de Tribunais Superiores e do Tribunal de Contas da União, ou se torna ministro de Estado, os inquéritos e ações contra ele no primeiro grau são encaminhados ao STF. E isto se aplica ao STJ, que julga crimes comuns praticados por governadores dos Estados e do Distrito Federal, crimes comuns e de responsabilidade de desembargadores dos Tribunais de Justiça e de conselheiros dos Tribunais de Contas Estaduais, dos membros dos Tribunais Regionais Federais, Eleitorais e do Trabalho. Assim, quando alguém é investigado e seria julgado pela Justiça de primeira instância e obtém um daqueles cargos, vai para o fofo privilegiado.
De 2014 para cá, só os indiciados pela Operação Lava Jato tiveram 22 casos com sentença prolatada pelo juiz Sérgio Moro, sem se falar nas centenas de juízes, federais e estaduais. O juízo de primeiro grau leva, em média, um ano e meio para chegar a um resultado. Enquanto isso, o STF, a partir do “mensalão”, não condenou ninguém, consumindo naquela ação, a partir da sessão de julgamento, um ano e meio e nada menos que sessenta e seis sessões para chegar a um veredicto. O único ato digno de registro foi o recebimento da denúncia contra Eduardo Cunha, que estaria livre e gastando dólares nos restaurantes caríssimos de Paris e Abu Dhabi se seu processo não tivesse caído nas mãos de Sérgio Moro. O julgamento pelo juiz singular é, em média, cinco vezes mais rápido que os do foro privilegiado. Mas a culpa não é dos tribunais, que não são aparelhados para instruir processos, mas para julgar recursos. Mas isto foi meticulosamente estudado pelos criadores do privilégio de foro. E lá se vão vinte e oito anis de impunidade!
A demorada tramitação nos tribunais abre risco de prescrição das penas, fazendo com que a Procuradoria-Geral da República (PGR) peça a extinção da ação, em razão de o parlamentar não poder ser mais condenado, pelo tempo da pena prevista em eventual condenação, indo para o lixo anos de investigações e recursos públicos gastos para a apuração de supostos crimes.
Uma operação muito comentada, a “Sanguessuga”, detonada em 2007, tem um caso emblemático: o deputado Josué Bengston (PTB-PA) foi denunciado em junho de 2007 por suposta corrupção e associação criminosa em inquérito derivado daquela operação, quando, como pastor, conseguiu 14 emendas para comprar, através de sua igreja, várias ambulâncias; antes de ser apreciada a denúncia, perdeu o mandato, sendo o processo encaminhado à primeira instância, e quando o STF conseguiu mandar o processo para o juiz singular, Bengston virou de novo deputado em 2010, e o processo vaivém voltou ao STF, aonde chegou em 2012, cinco anos após a denúncia, que, nos últimos quatro anos, não conseguiu ser julgada. E em setembro daquele ano, o STF reconheceu a prescrição do crime e extinguiu o processo, levando à comemoração de outros na mesma situação, cujos casos estão prontos para julgamento, mas já com prescrição anunciada.
O próprio Supremo assume que leva pelo menos dois anos e quatro meses para que o processo esteja no ponto de ser encaminhado à PGR para oferecer a denúncia. E em um dos processos contra o senador Valdir Raupp, existe desde 2005 parecer da PGR pela absolvição. Onze anos!
Por estas e outras é que esse foro privilegiado começa a ser discutido pelo próprio Legislativo, com sucessivas investidas da PGR neste sentido, e agora o próprio povo começa a entender que ele é – como eu disse – uma injustificada discriminação contra essa igualdade de araque que a Constituição estabelece.
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa (AGI), escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected])
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