O cérebro autista
Diário da Manhã
Publicado em 15 de março de 2016 às 00:41 | Atualizado há 9 anosO autismo é uma doença cerebral com manifestações infantis e que pode afetar gravemente o comportamento. Foi descoberta pelo psiquiatra infantil americano Leo Kanner, ainda na década de 1950. Kanner estudou casos graves, de crianças que , inclusive, não adquiriam a linguagem normalmente. Depois disso, o psiquiatra alemão Hans Asperger descobriu que há variações intelectuais do autismo, alguns com capacidade cognitiva normal ou até acima do normal. Foi o que ele chamou de “psicopatia autística”, hoje denominada de Síndrome de Asperger. Depois, alguns psiquiatras ingleses, Lorna Wing, Sula Wolff, D. Tantan, descobriram que muitas “personalidades esquizóides” (pessoas retraídas, “nerds”, que gostam mais de atividades solitárias – games, livros, gibis, etc – do que de “gente”) também podem se enquadrar no espectro do autismo.
Em outras ocasiões, os sintomas autísticos podem cavalgar sintomas de esquizofrenia infantil, sendo difícil o diagnóstico diferencial e levando alguns psiquiatras a julgarem que pode tratar-se também de um mesmo continuum de doenças, um mesmo espectro de doenças.
No início, o próprio Kanner e outros psiquiatras de orientação psicanalítica achavam que a doença era causada por causa de uma relação disfuncional entre a criança e a mãe. As mães, durante muito tempo, por causa da psicanálise, foram julgadas “culpadas” pela causa do autismo, mães frias, rejeitantes, ausentes, distantes, muito rígidas, etc. Depois, com o avançar das pesquisas médicas, mostrou-se que as causas eram cerebrais, levando Kanner a retratar-se publicamente, escrevendo um livro denominado Em defesa das mães.
Na final da década de 70, após décadas de atraso, a psicanálise começou a perder força nos EUA, propiciando o desenvolvimento de uma psiquiatria baseada em evidências biológicas.
A partir daí, inúmeros grupos de pesquisa (Universidade de Pittsburgh, Universidade da Califórnia, Gottenberg/Suécia, etc) começaram a descobrir várias alterações importantes nos cérebros dos autistas.
Algumas destas pesquisas são relatadas no livro O Cérebro Autista, Ed.Record, escrito por uma cientista-zootecnista, Temple Grandin, ela mesma uma autista de alta performance cognitiva (entre outras coisas, inventou um método para acalmar o gado num curral, inventou métodos complexos de manejo do gado em confinamento, etc ).
Ela usou de suas altas habilidades autísticas para adquirir conhecimento científico. Por exemplo, quando pequena, para acalmar-se, ela gostava de ser envolvida por uma série de cobertores, ficar “quietinha” num canto, debaixo do sofá, sem estímulos. Ela então inventou uma “máquina de abraçar o gado”, algo que tem um grande poder “calmante” sobre um animal que está muito raivoso ou agitado. Depois, também utilizou de suas prodigiosas capacidades visuais-espaciais (memória, desenho, profundidade, complexidade) para desenhar currais, silos, estações de tratamento de ração,etc.
As pesquisas cerebrais no autismo inicialmente vislumbraram que os autistas tinham alterações de uma área encefálica chamada “tronco” e, depois, no cerebelo. Acredita-se que esta área seja um “cruzamento” de várias modalidades sensoriais e que os autistas tenham disfunções nestas áreas, levando-os a sentirem-se imersos em uma grande confusão, uma “bagunça” sensorial (por isso não gostam de lugares muito barulhentos, com muita gente, muitos estímulos ao mesmo tempo, etc).
A falta de capacidade de integração de vários estímulos ao mesmo tempo poderia também explicar o porquê dos autistas terem dificuldades em contatos afetivos com as outras pessoas. Isso acontece porque o contato afetivo do bebê com a mãe já implica em uma quantidade de estímulos muito grande, estímulos que têm de ser integrados numa só vivência (p.ex., estímulos de voz da mãe, estímulos visuais da figura da mãe, estímulos táteis, estímulos tônico-musculares, prosódia da voz, etc). Na medida em que as crianças autistas não conseguem integrar estes estímulos, elas não conseguem apreender bem a relação afetiva com a mãe, uma vez que esta relação implica a sincronia e integração de estímulos de diferentes tipos.
Outras pesquisas descobriram que no cérebro autista há assimetrias entre o hemisfério direito e esquerdo que não são encontradas nas pessoas normais. Na figura do cérebro de Grandin, que vemos em anexo aqui nesta matéria, podemos notar duas destas anomalias: no hemisfério esquerdo (lado esquerdo do cérebro) o feixe de fibras que ligam uma área com outra é menor no cérebro de Grandin (é a figura de baixo). Já no hemisfério direito (lado direito do cérebro), acontece o contrário, as fibras são muito mais grossas e suas ramificações muito mais ricas. Isso explica o porquê de alguns comportamentos de Grandin, tal como sua dificuldade para entender piadas (problema de simultaneognosia na junção parietotemporoocciptal do hemisfério esquerdo), sua dificuldade com atividades lingüísticas (localizada no lado esquerdo do cérebro), sua dificuldade em problemas matemáticos que envolvam várias etapas simultâneas de processamento. Por outro lado, Grandin demonstra grandes habilidades naquilo que tange o lado direito do cérebro, por exemplo, uma capacidade de desenhar e memorizar figuras muito complexas, depois de ter olhado a paisagem uma só vez (ver figura anexa de um curral desenhado por ela após ter visto, de relance, durante poucos segundos, esta estrutura numa fazenda). Atividades viso-espaciais estão localizadas basicamente sobre o hemisfério direito, daí a riqueza e a largura das fibras e conexões nesta região. As fibras são grossas porque a informação visual tem de ser carregada do lobo occiptal (atrás no cérebro) até o lobo frontal .
Alguns psiquiatras julgam que grandes autores das artes visuais, p.ex., Moebius, Van Gogh, possam ter sido autistas, ou “aspergers”, com alta performance visoespacial.
Os médicos que examinaram Temple Grandin notaram que ela tinha padrões de processamento visual muito superiores aos padrões de relação intersocial. Havia também desorganização das fibras da região da fala, explicando suas dificuldades lingüísticas desde a infância precoce. Os feixes de substância branca eram bem mais grossos nas regiões visuais.
Algumas outras alterações encontradas nos cérebros de autistas, e no de Temple Grandin, em particular, foram : aumento da região do ventrículo lateral esquerdo (indicando perda de fibras do hemisfério esquerdo), diminuição do cerebelo, diminuição da área do lobo parietal esquerdo (explicando a dificuldade em entender padrões lingüísticos complexos, simultâneos), aumento da área da amígdala e da área entorrinal (podendo explicar mais ansiedade, melhor memorização), megalencefalia do hemisfério direito (indicando maior processamento visoespacial, pois é este hemisfério o responsável por esta função).
Temple Grandin relata vários destes problemas psiquiátricos, inclusive episódios de depressão, ansiedade, obsessão, todos precisando da intervenção com medicação antidepressiva, serotoninérgica. Alterações nas regiões temporais esquerdas, entorrinais, amigdalianas, podem explicar em parte estes sintomas psiquiátricos.
Algo digno de nota neste livro é o fato de seu teor ser notadamente antipsiquiátrico. A autora insurge-se, desde a primeira página, contra “diagnósticos psiquiátricos”, “rótulos”, psiquiatras que “prendem”, que hostilizam homossexuais, diagnósticos errados, falta de confiabilidade neles, responsabiliza-os por confundi-la , às vezes, com a doença da esquizofrenia, etc.
Até uma autista de alto performance como a cientista Temple Grandin consegue, neste ponto, ser afetiva, ser humana, preconceituosa , discriminatória e padecer das mesmas “raivas” que as “pessoas normais” padecem contra os psiquiatras….
Triste é a sina desta nossa profissão….
(Marcelo Caixeta é médico psiquiatra)
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