O conto do vigário
Diário da Manhã
Publicado em 28 de dezembro de 2017 às 23:06 | Atualizado há 7 anosEntão é Natal…
Vamos celebrar!
Gula, velas coloridas, músicas natalinas, luzes ornamentando palácios e as áreas nobres das cidades… A magia perpetuando a cultura de um universo fantasioso de fraternidade cristã, harmonia e o verdadeiro espírito de Natal!
Ingenuamente, acreditei um dia no Coelhinho da Páscoa, de olhinhos vermelhos e orelhas grandes, que incondicionalmente trazia ovos de chocolates para todas as crianças. Inclusive para crianças pobres, negras, cristãs ou não e que quase sempre, vivem penduradas nas encostas movediças!
Como também acreditei que se eu fosse um bom menino, numa espécie de barganha com o Todo-Poderoso, eu seria recompensado com um belo presente de Natal. Eu seria merecedor, não por ser criança, inocente ou bom garoto, ganharia, pois acreditava que todas ganhariam presentes, por ser Natal, independentemente de merecer ou não.
Na minha pureza da mais tenra idade, também aprendi sobre um Cristo bem mais cristão, do que os muitos cristãos pregam agora.
Perguntava sempre:
__ Por que o Natal é sempre tão iluminado e colorido se na rua que eu moro – mesmo pagando taxa de iluminação pública – nem luz tem?
__ Ainda bem que as valas comuns da minha rua, não permitem que o caminhão de coleta de lixo passe, se não, meu Natal também seria no lixão!
__ Por que Papai Noel não é negro?
Responderam-me:
__ Não existe!
__ Respondi:
__ E Papai Noel, existe?
Agora, o tempo roubou minha infância, como a religião dos ladrões, charlatões e hipócritas roubou minha fé! E com ela, minha inocência. Descobri que o Coelhinho da Páscoa e o Papai Noel, estão para cultura cristã, como Saci Pererê e o Negrinho do Pastoreio, estão para o folclore brasileiro, na mesma dimensão de importância e realidade.
O mesmo “Boi da cara preta” que embalou meus traumas e temia encontrar na infância, agora adulto e portador de todos os pecados do mundo, temo ser mandado para o inferno! Enfim, tanto na infância como agora, vivo amedrontado pelas mesmas e cruéis ameaças.
Sob um constante terrorismo velado imposto pela tradição religiosa e consumista, o Natal como um bálsamo anual, vem nos brindar com um discurso religioso atrelado perniciosamente a um capitalismo selvagem, cúmplices em interesses escusos de cada lado, selando um pacto entre o sagrado e o profano.
Percebo agora, que era preciso fomentar meus sonhos de criança, para saciar a sanha de outros interesses.
E “que o verdadeiro espírito de Natal esteja dentro de cada um de nós”. Inclusive dos canalhas, larápios do erário público; dos sanguinários homofóbicos; dos estúpidos racistas; dos covardes machistas que agridem, violentam, estupram e assassinam mulheres; os ordinários molestadores de crianças nas alcovas das sacristias; os patifes de direita ou esquerda que dividem a mesma cela; os hipócritas que vão a igreja esfolar os joelhos numa sordidez deslavada e que cinicamente, ainda se intitulam “santos”!
Um destino glorioso de presentes, pompa e banquetes…
Para outros filhos de Deus, restam as migalhas que os ratos rejeitaram, o infortúnio de miseráveis esqueléticos e famintos, invisíveis aos presentes de cada dia e alheios aos banquetes natalinos!
O consumismo apropriou-se da festa “sagrada” ou vice-versa. Comemoram com mimos e comilanças o nascimento de Cristo, que segundo as Escrituras, nasceu em uma estrebaria, numa manjedoura, entre equinos e bovinos, numa demonstração clássica de simplicidade e talvez, do que seria o verdadeiro “espírito natalino”. Penso que Ele se constrangeria hoje, com o nível das comemorações em alusão ao seu nascimento, com muitas plumas e paetês, ostentação e oba-oba.
O Natal realmente é uma festa interessante!
Controversas a parte, reza a tradição cristã que o menino Jesus nasceu no dia 25 de dezembro. Numa região do continente asiático, conhecido atualmente como Oriente Médio. Região de sol escaldante e grandes áreas desérticas, entre mulas, ovelhas, cavalos e bois.
Muito diferente da Lapônia europeia, que afirmam viver o Papai Noel, o símbolo maior do Natal de um Cristo que nasceu em um contexto simples e humilde, viveu e morreu lutando contra a hipocrisia, as desigualdades e as injustiças.
Então qual seria de fato o verdadeiro sentido cristão do Natal? E o Presépio? Cabe na festa? Eternizado num momento, uma reprodução artística tão simples e majestosa, ovelhas, jumentos, estábulo… Para um Natal excludente, profano, regado a bebedeira e comércio! Lucro, exploração… Natal é para quem pode pagar! Seria então este o verdadeiro significado do “espírito natalino”?
E os presentes? Ah, os presentes. Papai Noel nunca falha.
Agora, se for criança pobre, quase sempre não tem nem o que comer na Ceia de Natal, nem benesses! Confraternizam e socializam-se com os ébrios e a indiferença social, o clima festivo lúgubre que celebram todos os dias santos, divide o espetáculo com os indigentes, sentados a grande mesa do abandono, fartando-se do banquete dos renegados, vivendo em pele e osso, o verdadeiro espírito do Natal.
Que saudade da minha inocente infância! Dos beijos e dos abraços de minha mãe! Quem aprendeu a viver como escravo tem medo da liberdade!
E o que os “papagaios” repetem todo ano, soam como unanimidade e dogma. Que neste Natal eu receba de presente menos hipocrisia, menos indiferença, menos intolerância e atitudes no lugar de palavras!
Conclusão, caí no “conto do vigário”!
(Marcos Manoel Ferreira, professor, pedagogo, historiador, escritor, pós-graduando em Docência do Ensino Superior. marcosmanoelhistoriageral@hotmail.com e www.vozesdasenzala.blogspot.com.br)
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