O derradeiro teco-teco, que saiu de Natividade
Diário da Manhã
Publicado em 24 de setembro de 2016 às 02:39 | Atualizado há 8 anosConheço gente que prefere morrer a entrar num avião. Casos existem em que as viagens aéreas desmancham até pretensões de futuro, incompatibilizando pessoas com certas profissões, como viajantes, representantes comerciais, executivos, jogadores de futebol, para não citar outras.
Não é carecido ir longe na memória para que se lembre de Gerson, o “Canhotinha de Ouro”, aquele que fumava Minister e recebia “cachê” de Vila Rica para provar que “leva vantagem em tudo, certo?” Como se pelava de medo de viajar de avião, e a profissão de jogador é um corre-corre aéreo, Gerson preferiu perder os milhões a viver eternamente com o coração na mão em cada véspera de jogo, e passou a faturar comentando aquilo que fez a vida toda: jogar bola.
Bem, mas estávamos falando em fobia de voar.
Quando morava em Belo Horizonte, eu era uma espécie de executivo na Escola Técnica Federal de Minas Gerais, indo freqüentemente a Brasília para descascar abacaxis no MEC ou cavar dinheiro com o Delfim, que era o dono do dinheiro naquele tempo. E numa das viagens, sentei-me ao lado do Secretário da Agricultura mineiro, Gerardo Renault, que – parece – era do mesmo time do Gerson. Desde o momento em que o avião taxiava na pista até o desembarque no Planalto, o homem ia com os olhos arregalados, suando por tudo quanto era poro, como se com aquela viagem estivesse dando um adeus à vida.
Quando a aeromoça trouxe o engana-estômago na bandejinha, o pobre passageiro, transpirando mais do que tampa de cuscuzeiro ou tirador de espírito, nem teve ânimo para deglutir um daqueles sanduichezinhos que se escondem debaixo de uma rodela de ovo. Se tivesse que pular de paraquedas, era capaz de carregar a poltrona, tão agarrado que estava a seus braços. E o que mais me dava pena era vê-lo tentar conciliar a dignidade de Secretário de Estado com o frouxo que se escondia no seu íntimo, ainda mais com a turma de gente que levava em sua comitiva, pois todo secretário que se preza deve estar encamboado de um bando de puxa-sacos.
Fico brincando com a angústia alheia, como se eu nunca tivesse passado aperto em viagem aérea. Se bem me recordo, por duas vezes vi a porca mal capada com esse negócio de avião. Mas, dentro do pressuposto de que o piloto, se não tratar de andar direito, é o primeiro que vai pro beleléu, procuro ganhar calma com esse falso consolo.
A primeira vez foi em 62, quando viajei com meu pai de Brasília pra Dianópolis num velho DC-3 da falecida Cruzeiro do Sul, que ia lotado, pois era início de férias, e não havia outro meio de transporte. A coisa de 50 minutos de vôo, meu pai, sentado ao meu lado, em cima da asa do velho DC-3, estranhou alguma coisa, mas, como que desligado do mundo, só fez um comentário:
– Uai, agora é que vi que a hélice tá parada…
Quando ele falou isto, é que fomos notar que o avião estava penso, como carro com pneu furado de uma banda. Foi um deus-nos-acuda: iam três freiras, que começaram a debulhar o rosário muito aflitas, e o medo generalizou-se, embora feliz-mente não tivesse chegado ao pânico, pois o piloto se apressou em acalmar-nos dizendo que aquilo era coisa tola e que o DC-3 era um avião muito seguro, que podia pousar em estrada e voar sem motor. O remédio foi voltar a Brasília, onde quase não conseguimos pousar: o avião só consegui chegar na cabeça da pista, ainda no barro, a 20 metros do asfalto, debaixo de um verdadeiro festival de ambulâncias e carros do Corpo de Bombeiros. Três ou quatro horas depois, repararam o motor e reembarcamos: só meu pai e eu, além da tripulação. O resto desistira. Dias depois, soube que o velho DC-3 enterrou o nariz numa aterrissagem em Posse, salvando-se a tripulação e os passageiros por milagre de Deus.
Outra – esta, pior – foi no ano seguinte. Lembro-me até o dia: era o “Dia dos Namorados”. Eu estava ali em Natividade, terra da querida amiga Joana Castro, passando uma temporada e no tal dia, lá pelas três da tarde, o subgerente do Banco da Amazônia, Bugre, inventou de fretar um teco-teco para irmos a Dianópolis fazer uma surpresa às namoradas. Na época, ele estava quase noivo de Joélia de Quinca Valente, com quem mais tarde veio a casar-se. Eu, nem namorada tinha. Mas fui, pois era meia hora de vôo, e o experiente piloto, Azeitona, conhecia a região como ninguém, de tanto voar fazendo frete.
O aviãozinho de Azeitona enterrou os pés na cabeceira da pista e levantou vôo pouco depois das cinco da tarde. O dia estava claro, o céu limpo, o piloto era capaz de vir até de olhos fechados, tanto é que não nos preocupamos com a viagem. Aliás, minto: quando assustamos do bate-papo animado já estávamos com uma hora de viagem. O fedamãe do Azeitona se distraíra e acabara se desviando da rota. Em meio a um aperto perfeitamente previsível, o Azeitona conseguiu, naquele lusco-fusco, entre lobo e cachorro, identificar um acidente geográfico qualquer, que lhe permitiu cortar rumo linheiro e sobrevoar Dianópolis, identificada apenas pelo facho de luz elétrica, pois já estava quase que completamente escuro. Com a experiência de Azeitona, não foi muito trabalhoso encontrar o aeroporto. O perigo era encontrá-lo cheio de animais, que à noite ali faziam malhador, tanto é que, antes dos pousos da Cruzeiro do Sul e da Vasp, o zelador do campo de avião, Manoel Bolacha, ia antes da hora correr com os animais pra poder o avião assentar.
Como a gasolina do Azeitona estava pelas pontas, o negócio era arriscar no “olhômetro”.
O Azeitona foi magistral (eta crioulo competente!): conseguiu aterrissar no meio de um monte de jegues e vacas espalhadas na pista de cascalho e sem qualquer contratempo.
Também, foi a derradeira vez que entrei num teco-teco.
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa (AGI), escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected])
]]>