Opinião

O estouro da boiada (Euclides da Cunha e Rui tinham razão)

Diário da Manhã

Publicado em 31 de agosto de 2018 às 23:46 | Atualizado há 6 anos

Sem­pre que me dá uma fol­gu­i­nha, pe­go um da­que­les li­vros an­ti­gos que compro no “se­bo” (na ten­ta­ti­va inú­til de re­com­por os que ti­ve em crian­ça), e pas­so ho­ras len­do tre­chos de an­to­lo­gi­as, co­mo a “Se­le­ta Li­te­rá­ria”, de Ma­xi­mi­a­no Gon­çal­ves, a in­su­pe­rá­vel “Flor do Lá­cio”, de Cle­ó­fa­no Lo­pes de Oli­vei­ra,  e es­que­ço o mun­do.

Is­to não só me per­mi­te ler re­ta­lhos do que há de me­lhor, co­mo tra­zer re­mi­niscên­cias dos tem­pos gi­na­si­a­nos, quan­do o se­ve­ro pa­dre Ma­ga­lhã­es nos obri­ga­va a esmiu­çar raí­zes e pre­ci­sar o éti­mo das pa­la­vras.

Tor­nou-se cé­le­bre, ce­le­bér­ri­mo, no meu tem­po o tre­cho “O Es­tou­ro da Boiada” que uma an­to­lo­gia es­tam­pa­va em du­as ver­sões: a de Eu­cli­des da Cu­nha (“Segue a boi­a­da va­ga­ro­sa­men­te, à ca­dên­cia da­que­le can­to tris­te e pre­gui­ço­so…”) e a de Rui Bar­bo­sa (“Vai o ga­do sua es­tra­da man­sa­men­te, ro­ta se­gu­ra e lim­pa, chã e lar­ga, ba­ti­da e tran­qui­la, ao tom mo­nó­to­no dos ei­as! dos va­quei­ros…”).

Em ci­ma da­que­les dois tex­tos o pa­dre Ma­ga­lhã­es tra­ba­lha­va com afin­co, com­pa­ran­do es­ti­los, con­fron­tan­do expres­sões e fa­zen­do a clas­se in­tei­ra perder a cabe­ça com uma sé­rie de exigên­cias.

Cá co­mi­go, sem­pre gos­tei mais de Eu­cli­des da Cu­nha, pois Rui acaba­va engasgan­do-me com seu vo­ca­bu­lá­rio eru­di­to de­mais pa­ra nós, gi­nasi­a­nos, e, ain­da por ci­ma, so­ca­dos num ser­tã­o­zão on­de só se lia o que era de es­co­la e ra­ros exem­pla­res do ex­tin­to “Ecos do To­can­tins”, que che­gavam por lá man­da­dos por um ami­go de meu pai, de Por­to Na­ci­o­nal.

Mas a ima­gem do es­tou­ro da boi­a­da fi­cou-me na ca­be­ça. Eu não podia ima­ginar que um ma­go­te de ga­do pu­des­se fa­zer um es­tra­go da­que­les, des­cri­to pe­los dois grandes es­cri­to­res.

E pu­de aqui­la­tar, por uma sim­ples amos­tra, o que uma boi­a­da desgo­ver­na­da po­de ser ca­paz de obrar.

Foi lá em cin­quen­ta e tan­tos – eu de­via re­gu­lar meus do­ze anos, se mui­to -, e me deu uma in­flu­ên­cia da­na­da mo­de ir com meu cu­nha­do Mo­re­no e vá­rios peões pa­ra o Pin­ta­do (fazen­da de meu pai, a quin­ze lé­gu­as, no sertão), ajun­tar uns bois pa­ra ven­der fi­a­do a um ma­ta­dou­ro que se ins­ta­la­ra nas ime­di­a­ções do cam­po de avi­ão da ci­da­de.

Mas es­ta é ou­tra his­tó­ria.

Tu­do cor­reu bem, e, ape­sar de ser um ga­do meio aris­co e es­quer­do com curral, for­mou-se um ma­go­te de mais ou me­nos umas trin­ta re­ses, den­tre elas uns pa­tuei­ros re­ni­ten­tes e sa­cu­dos acos­tu­ma­dos nas ca­po­eiras e en­se­a­das do ser­tão, on­de não ha­via cer­cas, e as fa­zen­das li­mi­ta­vam-se por ri­a­chos, bar­ras de cor­gos, gro­tas e pés-de-mor­ro.

Es­ses bi­chos, de iní­cio, da­na­ram a que­rer vol­tar pro seu pas­to, até que, en­lotados nu­ma ma­lo­ca com si­nu­ei­ros mais pas­si­vos e con­for­ma­dos, fo­ram to­ca­dos estra­da afo­ra, no ru­mo da ci­da­de.

À noi­te, che­ga­mos ao Je­ni­pa­pei­ro, on­de o do­no, ve­lho co­nhe­ci­do, cedeu o curral, pa­ra sair­mos de ma­dru­ga­da, a fim de al­can­çar­mos a Ser­ra do Fu­nil ain­da de dia, pois su­bir aque­las pi­ram­bei­ras me­do­nhas à noi­te não era só te­me­rá­rio: era impos­sível.

Fa­zen­do mar­cha de apres­sa­do, che­ga­mos à ser­ra ain­da de sol al­to; da­va pa­ra alcan­çar­mos o pla­no an­tes da bo­ca da noi­te e en­cur­ra­lar o ga­do em ci­ma, no planal­to.

Jus­ti­no Cas­tro, va­quei­ro do Pin­ta­do, com seu vo­zei­rão gra­ú­do, eco­a­va au­to­ritário na bo­ca­i­na da ser­ra, tan­gen­do o ga­do e cu­i­dan­do que ne­nhum boi to­mas­se triei­ro di­ver­so. Eu ia no coi­ce do ma­go­te, só mes­mo de compa­nhei­ro, le­van­do atra­vessa­da na lua da se­la um pe­sa­do ca­pa de manga­ba.

Quan­do os pa­tu­ei­ros do ser­tão des­con­fi­a­ram que es­ta­vam dei­xan­do seus pagos, de­sem­bes­ta­ram pra trás, der­ru­ban­do-me da égua em que eu ia mon­ta­do, e não hou­ve re­mé­dio que os pa­ras­se. Por um és-não-és, eu se­ria de­fun­to. O ex­pe­ri­en­te Jus­ti­no, xin­gan­do pra quan­tos ca­pe­tas ha­via no in­fer­no, bra­da­va com o ga­do pas­san­do de fi­a­po, le­van­do tu­do nos pei­tos e der­ruban­do o cava­lo de la­do, sob a bru­ta li­deran­ça de um mar­ruá de sa­co gran­de, que con­su­mi­ra dois di­as de cam­po na pe­ga­ção, lá no Pin­ta­do.

O es­tra­lar das ta­bo­cas foi di­mi­nu­in­do, até que sen­ti­mos que o ma­go­te já esta­va lá mui­to den­tro, es­gu­a­ri­ta­do no mun­do. Só fi­ca­ram seis ca­beças.

Da­li em di­an­te, ao su­bir qual­quer ou­tra ser­ra, eu ja­mais fi­ca­va no coi­ce da boiada. Fe­liz­men­te, foi a pri­mei­ra e a der­ra­dei­ra vez que pre­senci­ei um ten­de­pá daque­le.

E vi que Rui Bar­bo­sa e Eu­cli­des da Cu­nha não exa­ge­ra­ram. E olhe que só eram pou­cas re­ses, es­tou­ri­nho à-toa. Ava­lie uma boi­a­da in­tei­ra!

 

(Li­be­ra­to Pó­voa, de­sem­bar­ga­dor apo­sen­ta­do do TJ-TO, mem­bro-fun­da­dor da Aca­de­mia To­can­ti­nen­se de Le­tras e da Aca­de­mia Di­a­no­po­li­na de Le­tras, es­cri­tor, ju­ris­ta, his­to­ri­a­dor e ad­vo­ga­do. li­be­ra­to­po­[email protected])

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