O mito da mulher vítima e boazinha
Diário da Manhã
Publicado em 28 de junho de 2017 às 01:01 | Atualizado há 8 anosNa semana passada eu escrevi sobre a vitimização do negro em um cenário de violência generalizada, como a que ocorre no Brasil, que atinge índices de sociedades tribais ou que estejam em guerra civil declarada, como Síria e Iraque.
Critiquei o fato de atribuir aos homicídios de pessoas negras uma espécie de sistematização do racismo, como se tivéssemos como política de estado, com a anuência coletiva da sociedade, um processo de extermínio institucionalizado de todas as pessoas de pele negra. Ora, e como fica a abordagem sobre o fenômeno da violência motivada por critérios étnicos diante dos casos em que os negros são os autores dos crimes, de terríveis e abomináveis crimes? Chamo a atenção para observarem-se as circunstâncias ou quais as variantes determinantes que contribuem para a presença do negro no cenário da criminalidade violenta, inclusive em relação àquele que é “vitimizado”. Destaquei, ainda, para aquilo que o jornalista inglês Francis Wheen chama de “equívocos da modernidade”, em sua obra “Como a Picaretagem Conquistou o Mundo”. Refiro-me à moderna forma de mentir; ou seja, quando se pretende dar a uma mentira alguma nuance de seriedade ou de credibilidade, basta chamá-la de “dados estatísticos”.
Nesse sentido, novamente devo reportar-me ao “Atlas da Violência no Brasil 2017”. A pesquisa mostra a taxa de homicídios de mulheres por cada 100 mil habitantes, indicando um dado curioso. Já que estamos falando de população negra como vítima da violência, reportar-me-ei aos dados referentes, segundo o Atlas, aos homicídios de mulheres negras. No ano de 2015, em Goiás, para cada 100 mil habitantes, foram assassinadas 5,5 mulheres negras, enquanto que no Espírito Santo foram 2,5, Rio de Janeiro 3,6, Santa Catarina 2,6, Bahia 2,5. Verifica-se que mesmo nos estados mais populosos e com maior incidência de negros, o índice apresenta-se igual ou menor que os menos populosos e com escassa presença de pessoas negras.
Tomei os dados desses estados para demonstrar o quanto devemos duvidar de estatísticas. Observe-se que, mesmo a violência sendo generalizada, em todo o país, nos estados onde predomina a população negra, como Bahia e Rio de Janeiro, morrem menos mulheres negras que nos estados onde a população de negras é predominante.
Além da vulnerabilidade dos métodos de pesquisa, passíveis de diversas interferências – inclusive, ou principalmente, ideológicas ou sectárias – dois fatores devem ser levados em conta. Primeiro, as subnotificações pelos órgãos dos estados que camuflam seus dados para efeito de escamotearem informações sobre os reais índices de violência e protagonismo das ações letais praticadas pelos próprios agentes das forças de seguranças estatais.
Segundo, não tem como ser levada a sério nenhuma abordagem sobre a violência sobe um olhar restrito, limitado, às questões étnicas ou de gênero. Violência é violência. Não existe violência contra negros, homossexuais, mulheres, etc. Existe, sim, violência.
Sempre que ocorre um caso de violência envolvendo mulheres como autoras, surge algum grupo tentando amenizar a reprovabilidade do ato, não raramente atribuindo o crime praticado a “possíveis influências dos homens que acabam convencendo a mulher a entrar para o mundo do crime”. Sim, mesmo com o crescente número de mulheres sendo presas e condenadas — muitas vezes por crimes os mais cruéis, há determinados grupos de feministas que insistem em vitimizar as mulheres. É um discurso incongruente. Ou a mulher é livre e dona de seus próprios atos ou não passa de um ser servil e facilmente manipulado.
A visão romântica de que a mulher é boazinha não tem sentido na sociedade atual, onde os meios de comunicação estão cada vez mais acessíveis e a liberdade da mulher é “irmã siamesa” de seu livre arbítrio. O comportamento humano deve ser encarado dentro de uma complexidade, não, em hipótese alguma, como uma questão de gênero (de um lado o vilão, o homem, de outro a mocinha, a mulher frágil e pura). Homens e mulheres não vivem em mundos apartados, são partes de uma natureza única e complexa: a espécie humana. É preciso, para se compreender a dinâmica comportamental, que haja mais seriedade e menos cinismo no enfrentamento da violência, da criminalidade.
Nenhuma política pública eficaz no combate à violência será implementada enquanto questões sérias continuarem a ser tratadas com clichês. Como já tive a oportunidade de manifestar em escritos pretéritos, é perigosa a mentalidade segundo a qual o homem é naturalmente violento e a mulher não, pois, isso fomentaria preconceitos e mais conflitos nas relações intersubjetivas. Segundo especialistas, ambos os sexos possuem a mesma potencialidade de agressão.
O denominado “gene da violência”, o Monoamina oxidase A (MAOA), enzima responsável por decompor importantes neurotransmissores como a dopamina e a serotonina, estão presentes em homens e mulheres. Entretanto, os genes que o codificam estão localizados lado a lado no braço curto do cromossoma X. Seria, portanto, correto afirmar que a mulher é mais violenta que o homem por possuir dois pares de cromossoma X? Para a pesquisadora e professora Rejane Alves, da Universidade Federal de Minas Gerais, a afirmação de que homens são mais violentos que as mulheres não é correta.
A violência é consequência das relações humanas, sem relação com o sexo. Reduzir a violência ao gênero é muito pouco para o enfrentamento do problema. Para Rejane Alves, “ambos os gêneros são vulneráveis à violência, tanto na condição de vítimas como de agressores. O que define o papel de cada um são as relações de poder”.¬
O problema da violência talvez não seja enfrentado de forma séria em razão da necessidade de sobrevivência de determinados setores – políticos, financeiro. Há uma necessidade de vitimização seletiva a fim de assegurar uma infindável fonte de sustentação de grupos de poder, através dos seus discursos demagógicos e irresponsáveis, sem nenhum compromisso com a coletividade e para com o real enfrentamento do fenômeno da violência ou para a construção consciente, abrangente, englobante, de uma cultura de paz.
Parafraseando Wheen, é a picaretagem dominando o mundo.
(Manoel L. Bezerra Rocha, advogado criminalista – mlbezerraro[email protected])
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