O que torna injusto um acidente é a injustiça de seus motivos
Diário da Manhã
Publicado em 30 de novembro de 2017 às 00:13 | Atualizado há 7 anosQuando o pai de João faleceu, caindo de um andaime do quarto andar em que trabalhava como pedreiro, ele não havia completado ainda sete anos de idade. O pai de João, chamava-se Mário José, esteve 3 dias com febre e doente em casa, quando teve medo de ser demitido, e voltou ao trabalho. Quando colocava cerâmica da fechada do prédio, sentiu uma tontura e procurou amparar-se, mas o seu braço só alcançou o vazio,e ele caiu do alto, vindo a bater com a cabeça nas tábuas do andaime do 2º andar. Ao chocar-se com o solo, um fio de sangue escorreu de sua boca, fazendo uma pequena poça, no barro úmido. No dia seguinte saia do necrotério para ser enterrado como indigente. Durante muito tempo Francisca chorou o marido, à noite, em silêncio, e de dia procurava emprego. Não havia ninguém que quisesse empregada com criança, e ela não tinha onde deixar o pequeno filho João. Não podendo pagar o aluguel da casinha em que morava, foi despejada. O João era, então, um menino miúdo, olhos redondos e pupilas escuras, e apresentava na fraqueza do físico todos os estigmas das crianças da classe operária que vivem nos subúrbios das cidades. Alimentado, durante anos, unicamente com feijão, farinha e arroz que um pedaço de carne de terceira raramente temperava. O seu organismo desenvolvia-se num espetáculo de debilidade e fadiga. Criou-se e fez pedreiro, numa espécie de homenagem ao obscuro trabalhador que o pusera no mundo. Aos 19 anos, quando conseguiu o primeiro salário , a mãe deixou o 4° ou 5º companheiro de emergência, e ele passou a mandar em casa. A mãe morreu, e como cada homem, na sua opinião, tinha dever de sustentar uma mulher, o João procurou uma e casou-se, e começou a por no mundo filhos tão fracos, tristes e doentes como o pai.
O seu destino de operário em construção civil não era diverso daquele que tivera Mário José, o seu pai. Levantava-se às quatro horas da manhã, e tomava o trem das cinco, ou cinco e meia, dependendo do bairro onde tivesse trabalhando. Quando vinha, já trazia em uma pequena lata de leite ou de óleo, o almoço magro, feito sempre de restos de arroz e de feijão do jantar, a que a mulher juntava um pedaço de carne assada na véspera. As botas que calçava, pesadas e grossas, estavam sempre encharcadas, e quando chovia era com a roupa molhada que voltava para casa, após passar o dia inteiro dentro da roupa úmida e suja de massa, com que rebocava as paredes, ou sobrepunha tijolos, levantando casas e elegantes prédios. Com que orgulho olhava a obra terminada, após a retirada dos andaimes, pelos quais se movera durante meses, pondo em risco sua própria vida. Punha um pouco de sua alma no prazer com que ligava o cimento, ou no cuidado com que fixava azulejos. A colher com que alisava a massa possuía a sensibilidade humana dos seus dedos, daí a afeição que o prendia às casas que havia ajudado a construir. Aos feriados vinha para a cidade a fim de contemplar cada obra. Certa vez, encantado com um palacete em cuja construção trabalhara, passou a manhã inteira comovido e feliz a observá-la, como um noivo idoso que olha a noiva adolescente, ou como um pai que fita o primeiro filho. O morador do palacete estranhou a presença insistente daquele homem, e telefonou para a polícia, e João passou o resto do dia no xadrez da delegacia.
Trabalhando sempre na umidade, e passando dias inteiros com a roupa molhada unida ao corpo, João estava aos 30 anos de idade, com as articulações dominadas pelo artritismo e sofrendo de dores que lhe arrancavam gemidos surdos e heróicos de touro no momento da ferra. Aos 35 anos subia com dificuldades uma escada para trabalhar nos andaimes. Os remédios custavam caro, e ele preferia um mês de sofrimento a ver, durante uma hora, um filho com fome. A dor que mais dói a um pai, é aquela que lhe chega através da carne do filho. A maior tortura de João era, entretanto, o retorno para casa, à tarde, nos trens dos subúrbios. Se aos homens sadios e fortes constituía uma luta a conquista de um lugar nos carros, a ele se tornava isso impossível. Empurrado e comprimido, o mais que conseguia era um lugar na plataforma – ou seja: entre os vagões – num tumulto de carnes suadas. Haviam, outros, que não conseguiam nem isso, viajando agarrados por fora dos vagões, segurando-se nas ferragens com os pés e com as mãos. Às vezes, no cruzamento de dois trens, o ar deslocado levava o chapéu de um deles. Havia então gargalhadas, pilhérias e assobios, que se multiplicavam pelos outros carros, na celebração ruidosa do acontecimento acidental.Sabendo da fragilidade das suas pernas, João jamais andou pendurado no carro pelo lado de fora. Preferia esperar dois ou mais trens até conseguir um lugar menos perigoso na plataforma. Certo dia, porém, parecia que todos os operários dos subúrbios haviam largado à mesma hora. Os trens partiam cheios, e ainda permanecia na estação muita gente cansada e barulhenta, a espera da condução. Com a roupa molhada no corpo, João começou a sentir arrepios de frio, como de febre. Subitamente, sentiu uma tontura e teria caído sem alguém não o amparasse. Anoitecia, e resolveu ir embora de qualquer maneira, no primeiro trem. Empregou, para isso, todos os seus esforços, mas o que mais conseguiu foi a extremidade da plataforma de um carro, mas com o espaço tão reduzido que teve de apoiar o outro pé no carro seguinte. A máquina deu um apito agudo, e pôs-se em movimento.
A vida é, na verdade, muito cheia de injustiças. Estes homens todos que vão aqui, trabalham o dia inteiro para ganhar uma miséria. Almoçaram um pouco de feijão com farinha, e para chegar em casa têm de ir assim como eu vou, arriscando a vida, e ninguém se importa com isso. O trem fez uma curva, atirando-lhe sobre os vizinhos. João agarrou-se mais forte ainda nos dois ferros da plataforma. E continuou consigo mesmo: – Nenhum dos que aqui, como pingente, viaja assim porque quer, mas todos vão rindo e brincando para esquecer que são infelizes e desgraçados. Nesse momento, o trem entrou em outra curva. O carro deu um balanço violento como um animal que desse um coice para se libertar de alguém que tivesse na garupa. João tentou segurar-se… Mas foi tarde. Os seus dedos não se mostraram obedientes à sua vontade, e o corpo frágil mergulhou entre os dois vagões, desaparecendo imediatamente. Vinte gritos partiram de vinte bocas. O trem continuou até a estação mais próxima, onde foram tomadas as providências para a remoção do corpo despedaçado de João.
No dia seguinte, os jornais noticiaram, em quatro ou cinco linhas, uma nova morte nos trens suburbanos. Uma das notícias, a mais extensa, estava assim redigida: “A Eterna Imprudência: – mais um horrível acidente aconteceu ontem em um dos trens da Rede Ferroviária Federal. Não levando em conta as tristes ocorrências que testemunhava quase todos os dias, o pedreiro João José dos Santos, brasileiro, casado cor branca, 35 anos de idade, não perdia o costume de viajar nas plataformas dos trens. Ontem, procurando o seu lugar preferido, sucedeu-lhe descuidar-se tombando na linha férrea, morrendo esmagado. Ao que tudo indica – continuou a nota – João se encontrava em estado de embriaguês, pois foi visto, por testemunhas, pouco antes, a cambalear na estação do trem”. Mas, essa não era a versão verdadeira. O infeliz João cambaleara por causa de uma tontura devido ao seu avançado estado de fraqueza, e de saúde debilitada. A viúva e os filhos do desventurado João, não tomaram conhecimento dessa notícia. Na tarde do dia seguinte, vieram ao Instituto Médico Legal da cidade, para ver sair o corpo de seu marido e pai. E dali, mesmo, se despediram: a viúva para procurar emprego, as crianças para pedir esmolas.
(Edmilson Mello, escritor)
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