O silêncio de Huntington e os gritos trumpianos nos balcãs
Diário da Manhã
Publicado em 27 de outubro de 2018 às 00:04 | Atualizado há 6 anosHá aproximadamente dezenove anos “o choque de civilizações” foi publicado, uma obra polêmica que tinha por tese a ideia de que aqueles países que possuíssem proximidades culturais em um nível mais amplo – o que o autor, Huntington, chama de civilizações – teriam a tendência a cooperação ou mesmo ao bandwagon, uma forma de alinhamento extremo, sendo estas questões culturais mais importantes que outras de ordem econômica, social, política ou mesmo ideológica. No dia dezoito de Julho do ano corrente, o presidente estadunidense Donald Trump parece se utilizar dessa visão cultural para propor que os Estados Unidos não venha em ajuda à um dos membros da OTAN.
O membro em questão é Montenegro, um país de cultura eslava situado nos Balcãs, e que mesmo tendo ampla proximidade cultural com países como a Rússia e a Sérvia – todos pertencentes à mesma civilização, segundo Huntington – se vê na necessidade de alinhamento e cooperação com os Estados Unidos e o bloco ocidental como um todo. Por ter um histórico de conquista, domínio e perda da identidade com relação à Sérvia, Montenegro necessitava do apoio de alguma potência contrária à seu dominador, e pelo fato de a Rússia desempenhar um papel favorável à Sérvia, Montenegro se viu obrigado ao alinhamento com o Ocidente, contrariando a teoria de Huntington e se tornando parte do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
Concomitantemente, em entrevista ao canal Fox no dia 18 de Julho, Trump levanta dúvidas quanto ao cumprimento do artigo quinto da cláusula de defesa comum da OTAN, que versa sobre a defesa mútua dos Estados contratantes, ou em outras palavras, “um ataque à um é um ataque à todos”. Trump já deixou claro, em outros momentos, sua posição favorável à política externa russa, bem como uma política doméstica e internacional criada à partir de um viés cultural comum (vide a política severa anti-imigração africano-latina), e disse que uma intervenção em favor de Montenegro poderia ser, inclusive, o estopim para uma Terceira Guerra Mundial.
No entanto, a posição do presidente levanta uma série de riscos e questões para a política externa estadunidense. Primeiro, o efeito demonstração ou efeito dominó, como ficou popularizado – no qual a ação de um é tomada pelos demais através de influência – que fez com que diversas ex-repúblicas soviéticas se tornassem democracias à partir da promessa de apoio e proteção ocidental, agora, pelo mesmo efeito, tendem a desacreditar o apoio estadunidense pelo mundo e na região em especial, podendo até se tornarem regimes autocráticos novamente. Segundo, uma vez levantada a dúvida quanto a atuação estadunidense na região, os antigos países dominadores terão passagem livre para retomar o domínio dos territórios, aumentando ainda mais a instabilidade nos Balcãs e por fim criando o ideário de descrédito nos regimes democráticos pelo mundo.
Terceiro, a declaração do presidente gera descrédito quanto a qualquer acordo pactuado com os Estados Unidos da América, uma vez que o principal acordo de cooperação em defesa firmado por eles é tão facilmente “revogado”, especialmente quando não há sequer previsão de crise política entre os Estados Unidos e a Rússia ou a Sérvia. Quarto e último ponto levantado pela declaração de Trump é o medo crescente na sociedade estadunidense de que a hegemonia de seu país no globo esteja sendo, aos poucos, substituída pela hegemonia chinesa, e a ação de Trump demonstra que o presidente tem preocupações muito mais domésticas que globais.
É válido lembrar que Montenegro mantém a maioria de suas características culturais, tendo alterado somente o regime político, ou seja, tudo aquilo que faz Montenegro se assemelhar em algum ponto com um país ocidental é proveniente de sua escolha por ser independente e democrático. Efetivamente, a teoria de Huntington dá suporte para uma política danosa aos Estados Unidos e contribui para aumentar o peso das políticas de fundo cultural de Trump, ao mesmo tempo nada fala quanto às novas questões do mundo. Assim, novas teorias poderiam ser sugeridas para lidar de maneira mais eficiente com casos como o de Montenegro.
Uma primeira candidata seria a teoria do Universalismo de Confluência, ou seja, a teoria que propõe que todas as vozes, de todas as culturas, fossem ouvidas democraticamente, tendo todas o mesmo peso e podendo construir juntas as políticas domésticas e internacionais. Essa candidata ainda apresenta a vantagem de ter diferentes perspectivas, visões, valores e identidades atuando juntas para lidar com um mesmo desafio, podendo solucioná-lo em todos os ângulos em que se apresentar.
Uma segunda candidata – que nada impede, possa trabalhar juntamente com a primeira – é a teoria das fímbrias ou Rimland, proposta pelo geopolítico Nicholas Spykman, e que fala sobre a necessidade de se cercar o pivô do mundo (a Rússia, por ter vantagens geográficas incomparáveis) para que o mesmo não se expanda militar, econômica e politicamente. Uma das formas de fazê-lo é optando por manter alianças com aqueles países que, apesar de possuírem culturas diferentes da estadunidense, poderiam servir como bases das políticas e economias ocidentais na região, como Montenegro.
Por fim, o caso de Montenegro diz apenas que, embora Trump tenha plenas condições de produzir políticas externas suficientemente positivas para seu país – e crê-se ser esse seu objetivo primário – suas escolhas teóricas para analisar e lidar com os problemas internacionais poderiam ser sempre melhoradas.
(Giulliano Renato Molinero Junior, acadêmico de Relações Internacionais na Universidade Católica de Brasília)
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