Os equívocos do plano de governo para segurança pública de José Eliton/Raquel
Diário da Manhã
Publicado em 22 de agosto de 2018 às 23:51 | Atualizado há 6 anosA apresentação de um plano de governo consistente é cada vez mais cobrado no âmbito da administração pública, cujos princípios norteadores devem ser a supremacia e indisponibilidade do interesse público.
Na sociedade moderna, cujo norte é a conformação com a legalidade, trata-se de orientação constitucional sua previsão. O plano de governo é comunicado ao eleitor, tornando-o sujeito de direitos em relação ao vencedor das eleições.
É notório que nas eleições de 2014, por exemplo, o candidato vencedor em Goiás não trouxe como discussão a venda da Celg, fato que por si só compromete a relação do eleitor com o eleito, já que foi realizado algo extraordinário e fora do estabelecido e pactuado.
Daí a importância do plano ser cada vez mais detalhista e debatido em público, trazendo à tona temáticas e disposições. Vários dispositivos legais do país tratam dos programas, caso do artigo 74 da Constituição Federal, que prevê como um dos sistemas de controle interno “avaliar o cumprimento das metas previstas no plano plurianual, a execução dos programas de governo e dos orçamentos da União”.
É o plano/programa, portanto, a antecipação, em tese, do que será feito. Como pesquisador das ciências criminais, devido principalmente ao que me foi dado na prática e vida acadêmica, tenho por definição que o plano que se refere ao bem estar físico e mental da população em relação às práticas de violência deve ser questionado desde o momento em que é apresentado.
Já é consenso na academia, por meio de centenas de estudos nas principais universidades do mundo, que a violência é uma problema complexo, cujo sucesso de combate está nas ações preventivas e não no controle posterior, quando o ato violento já ocorreu. Se o que incomoda a sociedade é a estatística, evidente está que seu enfrentamento deve ser anterior à ocorrência. Trata-se de questão de lógica e economicidade.
Neste sentido o plano que não contempla a interdisciplinaridade é falho em sua origem, já que para a redução das estatísticas criminais se busca, inclusive, a redução da violência policial. Vem daí que no mundo todo tem ocorrido gradualmente um deslocamento das funções da figura do policial – o que ocorre também em Goiás, como é o caso da instituição das “escolas militares”. O policial torna-se também educador e orientador.
O Plano de Governo de José Eliton/ Raquel Teixeira é falho neste primeiro quesito, já que insiste em um modelo de combate à violência antiquado e que está exposto nos resultados negativos cada vez mais assustadores que ocorrem no Brasil. O modelo apresentado é semelhante às promessas de campanha da década de 1960, época em que os planos não eram oficializados juridicamente.
É importante relativizar a crítica ao plano e não aos seus autores, já que tanto um como o outro apresentam capacidade de diálogo e compreensão da realidade, sendo que jamais disseram ser donos da verdade. O que se analisa neste texto, logo, é como o Estado de Goiás, em 2018/2019, entenderá a violência e como se dispõe a combatê-lo.
Expõe-se, portanto, uma crítica por meio de opinião embasada em um conjunto de autores e estatísticas com o mínimo de confiabilidade. A visão crítica visa apresentar um viés divergente ao que foi proposto, já que não se reconhece o plano inserido na moderna literatura de enfrentamento da violência.
Para entender o programa, escreverei dois artigos, sendo que o publicado hoje busca compreender o objetivo específico do plano de governo de Eliton/Raquel.
Sob o capítulo “Cidadão seguro: segurança pública”, Eliton/Raquel tratam de um tema plural de forma unívoca. O texto do objetivo do plano é o seguinte: “Proporcionar segurança ao cidadão, protegendo a vida e o patrimônio, por meio do desenvolvimento de ações integradas e transversais, com foco na redução da criminalidade e da violência. Valorizar e ampliar o efetivo. Aprimorar e melhorar as rotinas operacionais, os equipamentos e as estruturas físicas das forças de segurança. Modernizar as unidades de segurança pública”.
Em nenhum momento o governo complexifica a prevenção da violência. Se o foco é a redução de criminalidade, no mundo existem duas políticas públicas adotadas e orientadoras: redução do ímpeto criminal por prevenção e uso ostensivo da polícia para reprimir ações delituosas.
Como se percebe, o plano não adota a primeira opção. E se adota a segunda, existe uma falha grave na política adotada ao longo do tempo, já que ocorreu sensível redução do efetivo policial – o material humano que pode aplacar “em tese” o aumento da criminalidade. E não existe perspectiva à médio prazo de aumentar o efetivo em larga escala, já que aumento de policiamento, como é observado em vários estudos, não interfere necessariamente na redução drástica da criminalidade.
Nos estudos de violência da USP, Cambridge, Columbia, o tema segurança pública é subsidiário aos estudos de violência social e individual, já que a origem desta compreensão está, sobretudo, em um grande guarda-chuva teórico: as ciências criminais. Logo, todo o contorno que deveria nortear a compreensão e o diálogo com o programa é ignorado.
Quando o candidato ao governo escreve “Valorizar e ampliar o efetivo” isto significa atender uma carreira e um grupo específico: os policiais, que, de fato, atuam de forma extenuante em Goiás. É uma política direta e ‘interna corporis’ inicialmente, mas apenas indireta para grande parte da população. Vem daí a principal crítica: valorizar e ampliar efetivo deve fazer parte de uma política administrativa e não de combate à violência. Se isto é programa, então basta repetir as linhas gerais a a cada ano e cada pleito. Plano é mudança de eixo, paradigma, ideologia, exposição de rotas e acontecimentos.
Por fim, o objetivo do governo, que busca reeleição é “Aprimorar e melhorar as rotinas operacionais, os equipamentos e as estruturas físicas das forças de segurança. Modernizar as unidades de segurança pública”.
Ou seja, trata de equipamentos e infraestrutura, algo essencial para o efetivo combate da violência, mas que está dissociado da política criminal como um todo.
A falta de preocupação com o humano e social na exposição revela uma interpretação antiga do fenômeno da violência, feita exatamente como na maioria dos estados do país que enfrenta a escalada da criminalidade, já que a degradação delituosa se repete de forma uniforme na maioria das unidades da federação exatamente pela falta de aplicação de conceitos científicos modernos e atuais na elaboração de tais políticas de segurança pública. Impera o improviso e o amadorismo, cuja maior exemplo é o próprio Governo de Goiás em voga, que teve quatro secretários de segurança pública em um único mandato!
Acredito que planos como o apresentado pela dupla de pretendentes integra o que chamo de fase pré-científica das discussões referentes ao combate à violência, já que está amparado mais em opiniões e menos em dados empíricos. Repito: como um todo, os governos brasileiros fracassaram no combate da violência. E o motivo é um só: ou não ter plano ou repetir linhas gerais na forma de plano, como faz o grupo do PSDB que pretende se manter no governo em Goiás.
O plano de Eliton/Raquel não apresenta um diálogo com modelos teóricos explicativos muito menos com números extraídos da realidade.
Falta exatamente a compreensão do “giro sociológico” que ocorreu nas últimas décadas, restando ao estado de Goiás, caso Eliton consiga a reeleição, replicar modelos arcaicos de combate, prevenção e persecução penal.
A falta de compreensão do que se quer fazer, denominar e aplicar é o erro mais grave do plano exposto.
Logo, não se percebe eixo de ação. Quem orienta o grande debate sobre violência é a ciência criminal, ramo de conhecimento que melhor conseguiu contribuir através da sistematização do grande problema social. Tal ciência une o direito penal, a criminologia e a política criminal – é desta última que vem, destarte, todo o programa apresentado pelo atual governador.
Nas nações mais desenvolvidas busca-se sistematizar os programas de governo em dois pilares: contribuições sociológicas da criminologia e possibilidades da política criminal, que incluem desde a iluminação pública até a criação de uma polícia de elite para reprimir criminosos. A “polícia” entra neste segundo grupo. Ela é essencial, mas não é exclusiva. Outros atores são chamados para enfrentar o problema.
Esta falta de compreensão das ciências criminais, que se observa diante do simples objetivo exposto por Eliton e Raquel, revela que o programa falha ao interpretar o que está exposto no artigo 144 da Constituição: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio […]”.
Não se analisa, no plano, a “responsabilidade de todos”, uma vez que o plano não se aprofunda, não se faz verbo, não instrui o gerúndio. Não temos parágrafos, mas apenas frases soltas, pequenos refrões.
Ao longo de seis anos, desenvolvi meu doutorado na região do Entorno do Distrito Federal pela Universidade Federal de Goiás (UFG), tendo como objeto a pesquisa de violência nos municípios da localidade. E esta proposta de pesquisa se desenvolveu exatamente pela compreensão de que cada espaço guarda semelhanças de criminalidade e características próprias.
Esta individualização é necessária, pois apenas a compreensão das características essenciais da criminalidade, via diagnóstico social, já que o crime é fato jurídico e, sobretudo, social, poderá ter maior possibilidade de acerto do que as cinematográficas ações que visam mais chamar atenção da mídia do que produzir efetivos resultados.
Marçal Justen Filho, um dos maiores administrativistas do país, chama atenção para o que se tenta fazer hoje no Brasil: instituir um estado-espetáculo para em vez de resultados entregar “imagens” para as pessoas, fazendo-as se contentarem com aquilo que nunca viram. Com a violência isso não funciona, pois ela se traduz por meio da linguagem urbana. Ela chega por meio da arma na cabeça, pelo cheiro de morte provocado pelo corpo que fica exposto por até 20 horas no chão sem que o IML venha coletá-lo ou pela morte de um ente. A sociedade enfrenta a violência e a chamada sensação de insegurança.
Esta modalidade de proposta, entra ano e sai ano, não traz benefícios para a população, muito menos para os agentes envolvidos. É um simulacro.
Em próxima edição, pretendo analisar de forma detida a proposta de governo denominada “Iniciativa garantida” e “Iniciativa Inovadora”, que constam nas páginas 18, 19 e 20 do plano, apesar delas não terem sido efetivamente desenvolvidas, mas apenas expostas em pequenas frases e períodos.
(Welliton Carlos, pesquisador, advogado, jornalista, especialista em jurisprudência – Berkeley University, mestre em Comunicação – UFG, mestre em Direito Agrário – UFG, doutor em Sociologia da Violência – UFG e professor universitário)
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