Opinião

Padres perversos

Diário da Manhã

Publicado em 11 de agosto de 2016 às 04:20 | Atualizado há 8 anos

Dois colégios, um dos padres; outro das freiras. Duas cidades bem pequenas nas barrancas do rio que ali divide Goiás e Mato Grosso. Lado goiano, Santa Rita do Araguaia; mato-grossense, Alto Araguaia. A rodovia federal que liga os dois Estados é a única avenida desta e daquela povoação. A uns metros  da ponte, à esquerda de quem chega da terra goiana, bem vistoso, o colégio masculino. Seu nome é Ginásio Padre Carletti, mas ninguém o diz e não há inscrição que o anuncie. Ao seu lado, escondido pelo muro, o feminino. Entre os dois, o fim de uma rua de movimento quase nulo. Antes dessas duas escolas, ergue-se, acanhada, a capela usada pela cidade e pelos internos.

É março de 1958. Tenho 13 anos. Em frente a esse modesto templo, meu pai, por volta das dez da manhã, entrega-me ao padre Nelson, o diretor.  Despede-se do abatinado e de mim. Nessa hora descubro que o amo mais do que até então imaginava. Retenho lágrimas e lhe solicito a bênção, que me é concedida. Dele sinto dó por  ser meu pai, menino tão desobediente que tinha de deixar o lar paterno-maternal e levado para um internato distante.  Prometo a mim mesmo  envidar esforços para avançar nos estudos porque já era para estar no ginásio, mas repetirei a terceira série primária.

Aqui me encontro porque fora expulso da Escola Paroquial Santo Agostinho, da nossa amada Jataí, dirigida por agostinianos. Faltara a uma missa. A professora Cidália determinara que permanecêssemos na sala depois das onze da manhã, horário de encerramento das aulas, a escrever, nos nossos cadernos, a seguinte bobagem: “O bom aluno assiste às missas aos domingos e dias santos”. Ela foi pra sua casa almoçar e ali ficamos, com fome e com calor, sujeitos aos seus caprichos. Revoltei-me e convoquei a turma para irmos embora e quase todos me seguiram. Na  manhã seguinte, ela comunicou â classe que o padre diretor, um tipo chamado Miguel, suspendera, não sei por quanto tempo, os que, menos eu, fugiram. A mim se destinou  dose maior: expulsão. Nem Cidália e nem seu chefe nos ouviram. Escutei, humilhado, a sentença. Ninguém me defendeu. Nem meus pais me deram ouvidos. Decidiram me pôr nesse internato. Não os condeno, também são vítimas da sociedade perversa.

Expulso, que vergonha! No dicionário dos justiceiros, expulso é sinônimo de mau elemento e  eu mesmo assim me considerava. Demorei-me a descobrir que me equivocara.  Praticara o bem, não o mal.

Nesse “educandário” salesiano estudo de 1958 ao primeiro semestre de 1960, encerro o primário, principio o ginásio.

Todas as noites, de segunda a sábado, somos recolhidos à sala de estudo, onde é sepulcral o silêncio. As horas, enquanto avançam, incrementam o sono. Caso  um aluno se debruce sobre a carteira, o padre ou seu preposto, que nos vigia, o faz aprumar-se. Cumprido esse expediente, ainda calados e arrastando os pés que tentam suportara o peso do sono, nos conduzimos para o cruzamento dos dois pórticos externos onde nos submetemos a uma  tortura no formato de reza, reza comprida. É proibido encostar-se nas paredes ou nas colunas. Esse ritual tem duas fases. Encerrada a reza,   principia-se o boa noite do diretor. Durante  mais dez ou quinze minutos ele soltará palavras vazias ao vento. Finalmente. ele diz boa noite. Ainda em silêncio, nos endereçamos ao dormitório. Alguns vão até ele reivindicar a  bênção. Há, inclusive, os que osculam sua destra. São vítimas enaltecendo o algoz

 

(Filadelfo Borges de Lima, 72 anos, natural de Jataí, autor de diversos livros, sócio-fundador da Academia Rio-Verdense de Letras, Artes e Ofícios, curso superior incompleto, maçom 33, auditor fiscal aposentadao do Estado e Goiás)

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