Pedestre
Diário da Manhã
Publicado em 2 de março de 2018 às 22:52 | Atualizado há 7 anosO pedestre é, antes de tudo, um fraco. Um desempoderado. Na corrente do trânsito brasileiro ele é o elo mais fraco, aquele que está em desvantagem permanente.
Quem dirige um veículo detém o poder. O volante lhe garante poderes ilimitados, quase mágicos. Ele acredita que pode tudo, tanto em relação a quem está andando a pé quanto em relação aos demais motoristas. Todos devem se curvar aos seus desejos, cuidar de suas necessidades (esse idiota não viu que eu vou virar à esquerda?), estar atento às suas aspirações mais secretas (essa desgraçada roubou minha vaga!) e facilitar a realização de seus planos, mesmo os mais banais (vamos, seu roda-presa! Não está vendo que eu estou atrasado para apanhar o meu filho na porta da escola?).
Somos todos pedestres e muitos de nós também motoristas. Somos, ao mesmo tempo, pedestres e motoristas. Quando a pessoa está no modo motorista quer que todos os pedestres se submetam a ela. E quando está no modo pedestre passa a criticar todos os motoristas que passam a ser desmiolados, insensíveis, cretinos, assassinos em potencial.
O motorista insensível às necessidades do pedestre se esquece que, mais cedo ou mais tarde, naquele mesmo dia, ele/ela vai se tornar um pedestre. Mais que isso, naquele exato momento em que ele/ela põe em perigo a vida de um pedestre, seu filho, sua filha, sua mulher, seu esposo, seu pai, sua mãe, um parente próximo, alguém muito querido está também no modo pedestre e precisa da cooperação de dezenas de outros motoristas para sobreviver mais um dia no caótico trânsito das grandes cidades brasileiras. Nunca é demais repetir, somos todos pedestres. O elo frágil da corrente.
O Artigo 68 do CNT (Código Nacional de Trânsito, 4ª. ed., 2010; disponível em Erro! A referência de hiperlink não é válida.) assegura ao pedestre a “utilização dos passeios ou passagens apropriadas das vias urbanas”. Que ótimo! Então eu posso circular pelas vias urbanas legalmente. Em seguida, no Artigo 69, o mesmo código restringe o cruzamento de pistas pelo pedestre às faixas ou passagens a ele destinadas, sempre que estas existirem. Mas, para isso, o código recomenda que o pedestre use os olhos, os ouvidos e o bom-senso. Isso faz todo sentido porque senão é morte certa!
No Artigo 70, o código diz que “Os pedestres que estiverem atravessando a via sobre as faixas delimitadas para esse fim terão prioridade de passagem, exceto em locais com sinalização semafórica onde deverão ser respeitadas as disposições desse código”.
Aqui é que o bicho pega. Na grande maioria das cidades brasileiras este artigo é solenemente ignorado. É letra morta. Do meu conhecimento apenas a cidade de Brasília (compreendendo aqui o Plano Piloto, Lago Norte e Lago Sul) e alguns outros gatos pingados Brasil afora, levam a sério esse artigo. Nas demais cidades, predomina a lei do mais forte. Ou seja, a dos veículos motorizados, os todos poderosos. Eles são grandes, pesadões e o pedestre com seu vulnerável corpo biológico não é páreo para eles. Perde de goleada, tipo dez a zero.
Para não ser atropelado, o pedestre só deve atravessar a pista na faixa designada. Mas, que isto fique bem claro, atravessar na faixa de pedestre quando a luz do semáforo estiver verde ou quando não houver carros sobre ela. Mas, convenhamos, quando não há carros trafegando, o pedestre não precisa de faixa para atravessar. Se não vem veículo algum, ele pode atravessar com segurança em qualquer lugar. Logo, na ausência do semáforo, a faixa é totalmente inútil no dia a dia do pedestre!
Às vezes acontece que um motorista de bom coração resolve dar uma colher de chá e para antes da faixa para que o pedestre atravesse com segurança. Acontece que o motorista ao lado não está nem aí para o pedestre. E se o infeliz se atreve a atravessar seu caminho, vai virar geleia. Então, a boa ação daquele generoso motorista é totalmente vã e cai no rol das boas intenções. Como diziam os antigos, de boas intenções está forrado o chão do inferno.
O que dizer dos motociclistas, vulgo motoqueiros? Eles, por terem agilidade nas manobras, se consideram os reis das vias públicas, acima de todas as leis, tantos as de trânsito quanto as da física. Em geral, dirigem de maneira ameaçadora, fazem manobras perigosas, circulam entre os carros, comandam o trânsito local. A grande maioria age como se merecesse tratamento especial. Eles usam aquela maldita buzina a cada segundo, como se quisessem alertar o resto da humanidade que eles querem passagem livre: Ó abre alas que eu quero passar, parecem apregoar aos quatro cantos. Eu cheguei, eu quero passagem, eu tenho pressa, eu tenho que fazer muitas entregas. Parece que é isso que aquelas insistentes buzinadas querem nos dizer.
E os ciclistas? Melhor deixar para outra ocasião…
É muito encorajador constatar que o CNT faculta a qualquer cidadão solicitar por escrito ao Sistema Nacional de Trânsito sinalização, fiscalização, implantação de equipamentos de segurança, como também sugerir alterações em normas e na legislação de trânsito. Aliás, registre-se aqui, o código foi redigido em linguagem surpreendentemente simples, ao alcance de qualquer cidadão letrado. Percebe-se que foi feito um grande esforço para diminuir o legalês e tornar a linguagem clara, direta. Ponto para o CNT.
Porém, fica a pergunta: como empoderar o pedestre? Obviamente, fazendo com que a totalidade do CNT seja realmente implantada, especialmente o Artigo 70. Isto constitui um enorme desafio para a sociedade brasileira tão desrespeitosa às leis em geral. As campanhas de educação para o trânsito devem ser permanentes. Que os candidatos a cargos eletivos Brasil afora se lembrem disso nas próximas eleições. Eu vou me lembrar porque sou pedestre convicto e praticante, prezo minha vida e a vida de todos os pedestres a quem amo.
(Tarciso Filgueiras, pesquisador, professor e escritor. Email: [email protected])
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