Pedro Caroba, que tomou o leite de um curral inteiro atopetado de vacas
Diário da Manhã
Publicado em 23 de outubro de 2018 às 03:14 | Atualizado há 6 anosLá no sertão do Duro, muita gente deitou fama por conta de coisas inexplicáveis que faziam: na área de feitiço, havia Chico-Me-Dá e sua mulher, moradores nas Bicas, Ezique, do Verdadeiro, e Maria Dentão, do Açude; já desmanchadores de feitiço, pontificou Joaquim Paraguaio, no sertão de Conceição, e o velho Severiano, morador da beira do Itaboca; na área de dar remédio, o mesmo Severiano e Maria Segurada, que assistia na Cabeceira Verde, entre Conceição e Taipas, e até apareceu lá pelo Duro um camarada que fazia papel virar dinjheiro e acaboi ganhando o nome de Pedro Dinheiro, de quem vou falar um dia destes. Só não convivi com Joaquim Paraguaio, Chico-Me-Dá e Maria Dentão, que não conheci e só sei da fama.
Mas, certa vez, encostado no balcão da “Casa Ponto Certo”, de meu irmão, padrinho Nélio, escutei uma história que ele contava para uma pequena plateia de fregueses, a propósito de fatos misteriosos, quando ele trouxe a lume o causo de um sujeito chegante por nome Pedro Caroba, que fazia coisas “invisíveis”, no dizer do povo. O citado frosteiro – padrinho Nélio contava – estava na beira do curral de um camarada que tirava leite das vacas, e, todo orgulhoso, propagandeava a gadama de seu patrão:
– Vaca boa de leite taqui! – entusiasmava-se com a quantidade de leite de uma vaca mirandeira, que, das dezenas de vacas paridas espalhadas no curral, era a que mais leite dava, sendo o orgulho do patrão.
Encostado à cerca do curral, enxada ao ombro, Pedro Caroba, novato por ali, desfeiteava:
– Quá! Eu bebo o leite dela todinho duma vez. Essas vacas daqui são de dar leite nada! – e seguiu para a roça que empreitara para roçar, pois ele vivia era de bater pasto e outros serviços de roça.
O vaqueiro mordia-se de raiva, mas nada dizia. E todo santo dia Pedro passava, provocando:
– Eu bebo o leite de qualquer vaquinha dessas aí!
O vaqueiro, tinhoso de natureza, não era de criar calos na paciência. Com ele, o negócio era resolvido na hora. Se aparecia uma novilha que não apanhava barriga, ele não contava conversa: botava para amansar no carro-de-boi, e, com pouco tempo, ela começava a engrossar o úbere e logo vinha bezerro. As maninhas, condenadas à eterna privação da maternidade, não ficavam ali pastando de graça, sem dar produção: iam para o carro-de-bois e para o engenho moer cana para criar corpo; e quando ficavam eradas, o patrão as vendia pelo preço de boi.
Por causa dessas manobras é que o patrão gostava do vaqueiro: procurava dar maior produção, ele mesmo roçava o pasto e nada fazia escondido do patrão.
Mas aquele chegante, que capinava por empreitada nas roças alheias, estava dando no vaqueiro cócegas de fazer uma coisa. Bem que podia experimentar se o chacoteiro provava o que dizia, mas como o patrão não estava, achava melhor aguardar a sua chegada. Conhecendo o gado por dentro e por fora, poderia escolher a dedo uma vaca para tirar a teima do Caroba. E estava ansioso para que o patrão viesse à fazenda, pra pagar o faroleiro na curva. Na certa, opinioso como ele só, o patrão iria comprar aquela briga. E o garganta, diante de tanto leite, iria era correr com a sela.
– Quá! Essas vaquinhas curraleiras dão lá leite nada! – e passava com desdém, de enxada ao ombro.
O vaqueiro ficava a ponto de explodir. E comentava com o companheiro que o auxiliava na tiração de leite:
– Curraleira? Pois sim! Agora, fica esse safado, que nem sei de que buraco saiu, desfeiteando do gado! Sujeitinho desaforado, rapaz!
Aí, o companheiro redargüiu, dizendo que conhecera o rapaz dias atrás, trabalhando na roça de um compadre; que Pedro Caroba era um rapaz misterioso; que não sabia de onde viera, mas tivera noticias de que era cheio de istúcias: pegava passarinho com a mão, embora o bichinho se esforçasse pra voar, sem poder; quando ele saltava uma cobra, ela endurecia ali mesmo, além de outras presepadas. Diziam, até, que tinha parte com o Cão. E ainda disse:
– …e o danado come muito mesmo. Já vi esse freguês tomando dois litros de leite no quebra-jejum, e nem cara feia fez. Ainda outro dia, ele chupou quatro melancias, e das grandes, deixando só o verde das cascas…
O vaqueiro arregalava os olhos, até descrendo do que ouvia.
– … e o interessante é que ele não urinou nenhuma vez, mas, em compensação, o meu compadre, que só chupou duas talhadas, mijou a tarde toda.
O vaqueiro franziu as sobrancelhas, pensou um pouco, mas não se deu por vencido:
– Quero ver o mistério dele é em cima do leite gordo dessas mirandeiras aí, ó! – e mostrou as vaconas de berro grosso.
Certo dia, o patrão chegou na fazenda, com o vaqueiro prosando animadamente e dando notícias do gado da maloca fulana, dos bezerros chupados de morcego e, justamente naquele momento, falava da desfeita de Pedro Caroba. Até ficou sem graça quando Pedro entrou, e disse, mostrando o rapaz:
– É esse aí, patrão, o rapaz do leite.
O homem mediu Pedro de cabeça aos pés:
– Vi dizendo que você é capaz de beber o leite de qualquer vaca da minha fazenda; é verdade?
– Quer dizer que é, sim senhor.
– Qualquer delas?
– Até de duas ou três.
O patrão olhou para os circunstantes com ar de mofa:
– Duas ou três? Cê tá é de pilhéria!
– Quer apostar? – o rapaz estava decidido.
– Eu pago pra ver! – o homem se interessou no tira-teima.
– Eu, para ser franco – retomou Pedro – bebo até de mais, pois nesta terra vaca não dá leite…
Isto feriu os brios do dono daquela gadama boa de leite, e que não admitia defeitos em suas vacas. Ainda mais com aquela debochação do rapaz, que apostou que se não bebesse o leite do curral inteiro pagaria a aposta com um mês de serviços na fazenda. Marcaram pro dia seguinte.
De manhã cedo, quando o dono da fazenda abriu a porta, o rapaz já o esperava, pronto para a viagem: coberta enrolada e passada ao ombro, calçando a enxada. Foram para o curral, onde lhe foi entregue uma cuia de seus três litros ou mais.
O curral batia chifres, de tanta vaca. O vaqueiro e um ajudante, com os relhos de arrear na mão, aguardavam apenas a ordem do patrão.
– Só estas? – era o rapaz, debruçado na porteira.
Daí a pouco, vem o vaqueiro com a cuia bambeando de tanto leite e a entrega ao rapaz, que, ante os olhos curiosos de todos, começa a sorver. Daí a pouco, mal o nível do leite desceu dois dedos no beiço da cuia, o rapaz afastou-a da boca, refugando, como que enjoado.
– O patrão e o vaqueiro se entrepiscaram, espantados com aquela possível desistência, quando Pedro botou a cuia em cima do mourão da porteira do curral.
– Desistiu?
– Desisti…
– Bem eu disse! – patrão e vaqueiro sentiam-se vingados, quando o rapaz voltou à carga, reclamando que gostava de leite não era bebido, mas comido com farinha.
Para lhe dar mais corda, o patrão mandou vir um litro de farinha, e Pedro Caroba reclamou que era pouca, que pudesse trazer logo uma quarta.
Veio a farinha. E o rapaz passou a devorar rapidamente, à vista dos olhares descrentes dos curiosos. As vacas iam sendo soltas, à medida que as desleitava. E o rapaz, comendo o pirão de leite com farinha, sem fazer cara feia. Patrão, vaqueiro e uns agregados atraídos pelo fato ficaram de boca aberta, ao verem a última vaca passar pela porteira do curral, em direção à manga de pasto. O saco de farinha, murcho no chão, e o rapaz, acabando a última colherada, ra-pando a cuia. Terminando, antes de devolver a vasilha ao vaqueiro, ainda pilheriou:
– Pensei que essas vacas daqui dessem leite.
Ninguém disse nada. Todos se limitaram a se entreolhar num gesto de incredulidade, enquanto Pedro Caroba, com a coberta enrolada e a enxada ao ombro, sumiu na entrada da vereda.
E voltaram para casa, muito desacoroçoados, comentando o caso das melancias e quase acreditando que, de fato, o Pedro Caroba tinha parte com o Capeta.
E ao darem a volta na cerca, avistaram espantados um monte branco de quase meio metro entre os matapastos, junto aos fundos do curral. Foram ver de perto: era só pirão de leite com farinha.
É, tem coisa que não se sabe explicar.
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras escritor, jurista, historiador e advogado. liberatopo[email protected])
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