Posse e Atri unem Brasil e Itália
Diário da Manhã
Publicado em 14 de julho de 2016 às 02:26 | Atualizado há 5 diasIlustres freiras possenses, Célia, Naltiva, Janina e Clair completam neste 15 de julho do ano da graça de 2016, cinquenta anos de consagração como Filhas dos Sagrados Corações (congregação a que pertencem), com merecida comemoração celebrada na Paróquia Senhora Sant’Ana de Posse.
Fui contemporâneo de escola e colega de ginásio das hoje freiras Clair e Naltiva, na década de 1960, quando tivemos o privilégio de ter como professoras duas missionárias italianas, Madre Maria Rosa Foglia e Soror Maria Crocifissa Conti, que lecionavam respectivamente latim e matemática, no antigo Ginásio Normal Regional Dom Prudêncio de Posse, e que com sabedoria mor, já nos ensinavam que além de nossos limitados horizontes havia um mundo melhor.
Foi com os olhos de Soror Crocifissa que aprendi a ver a Itália, cujas imagens trago impressas na minha lembrança e sei que ela levou, impressas na sua mente e no seu coração, as imagens desta nossa cidadezinha que tanto amava. Lembremos Posse de então, que ao centro de uma praça centenária, popularmente chamada de Praça do Jatobá, abrigava um prédio histórico em forma retangular (hoje deformado), contendo frisos decorativos que lembravam traços do estilo art dèco francês, de mistura com o estilo colonial português.
Nesse prédio que fazia parte do patrimônio histórico municipal, instalara-se um sistema de som chamado alto-falante, agregado a um pequeno estúdio de onde emanavam avisos de interesse público e onde nas horas vagas promovia-se uma sessão lítero-musical com apresentação de calouros que exibiam seus dons artísticos. Nesses serviços do prédio da amplificadora – assim chamada a central de avisos da municipalidade – este escriba estreante teve também divulgados seus primeiros textos poéticos, mais tarde versados para a língua italiana pela professora soror Maria Crocifissa Conti.
Num abrir de olhos
Agora fechemos os olhos e transportemo-nos para um lugar bem distante. Num abrir de olhos, já estamos em outra cidade antiga do centro da Itália chamada Atri, província de Teramo, situada na região de Abruzzi. Aí se descortinam grandes elevações e planuras que se estendem até as proximidades do mar Adriático.
Comparada com Atri, Posse deixa de ser uma cidade antiga, surgida de uma primitiva povoação chamada Buenos Aires, do início do século XIX, que se transformou depois num aposseamento às margens do rio Passagem dos Gerais, no sopé da Serra das Araras, um dos braços da Serra Geral que divide os estados de Goiás e Bahia, no centro do Brasil.
Atri surgiu da antiga colônia romana, Hadria Picena, que remonta ao ano de 290 antes de Cristo e que guarda ainda ruinas da remota povoação. Sua principal referência arquitetônica é uma catedral gótico-românica do período medieval (vide foto), bem diferente do pequeno prédio público da cidade de Posse, ao estilo colonial de mistura com o art dèco decadente.
Uma adoção natural
De perguntar-se como um modesto menino da cidade de Posse iria deslocar-se para a Itália, para aí estagiar como futuro professor de italiano, assim como a nobre religiosa, soror Maria Crocifissa Conti se deslocara para o interior do Brasil vindo a tornar-se professora pública em Posse, pacata cidade do leste goiano.
Talvez isso se explique por força de uma lei natural que enseje adoções de estrangeiros mediante um processo de assimilação cultural, assim como há relações de parentesco por afinidade que superam até mesmo os laços de consanguinidade. No caso em foco é a própria religiosa quem explica, numa última carta enviada a este destinatário (datada de Atri, 14-05-2000), lembrando como vivera em Posse dias felizes de sua juventude.
Retrato de um tempo
Mas como é sempre melhor ver com os olhos da alma aquilo que antes internalizamos como poesia, confessa soror Crocifissa que preferiria ver ou rever Posse como a conhecera, não já mudada, salvo se para melhor: mas mesmo assim, se tivesse que retornar um dia, sentir-se-ia como estranha em sua própria terra, girando por todos os lados sem reconhecer lugares e pessoas.
Certo que ao cumprir suas funções religiosas e educacionais no Brasil, soror Crocifissa não teria, como não teve tempo para conhecer a vizinhança de Posse cercada por serranias e planuras dos gerais que lembram a topografia acidentada da sua região de origem.
Nem imaginaria que o rio Paranã, que não deságua no mar Adriático, forma também um vale que atraiu para cá os primeiros habitantes em busca de terras férteis e de pastagens naturais, tal como o litoral Adriático de verdes planuras atrai pastores abruceses que ali se instalam a cada temporada.
As circunstâncias mesológicas são outras, mas a poesia da terra é a mesma, que nesta região do Brasil representa a cultura do pastoreio, tal como é vista a região de Abruzzi na Itália.
A poesia pastoril
A saga dos pastores do sertão goiano, como dos montanheses da região de Abruzzi, é também a base de sua formação histórica: no Brasil, a migração do gado levado a pastar nos gerais à beira das veredas, nas épocas de estiagens longas. Na Itália, a migração de ovelhas transportadas para as proximidades do mar, quando míngua ou seca a vegetação das montanhas.
A propósito, Gabriele D’Anunzio, em um de seus belos poemas intitulado “I pastori”, nos transporta a esse ambiente pastoril de poesia nativa:
Setembre, andiamo! È tempo de migrare.
Ora in terra d’Abruzzi i mei pastori
lascian gli stazzi e vanno verso il mare:
scendono all’Adriatico selvaggio
che verde è come i pascoli dei monti.
Traduzindo:
Setembro, vamos! É tempo de migrar.
Ora em terra de Abruzzi os meus pastores
deixam seus pousos e seguem rumo ao mar:
descem o Adriático selvagem
que é verde como a pastagem dos montes.
O que a saudosa soror Crocifissa jamais poderia imaginar é que o mapa florestal da região de Posse, na intersecção dos estados de Goiás e Bahia, cedeu lugar para a plantação mecanizada de soja tipo exportação. E que neste sertão que foi mar e que vem se transformando em deserto, só falta transplantar as serras que o circundam para cederem lugar a um mar artificial. Seria fácil: não foram transplantadas as estátuas dos faraós da margem do rio Nilo, para ali se implantar a barragem de Assuam no Egito? No sertão brasileiro, chegou mais cedo do que parece a tecnologia da globalização.
As homenagens que hoje Posse presta às suas ilustres religiosas, certamente estão sendo aprovadas e aplaudidas pelas nossas inesquecíveis mestras italianas que já se encontram no plano superior da espiritualidade, contemplando em Posse os frutos benfazejos das sementes de amor que aqui plantaram.
(Emílio Vieira, professor universitário, advogado e escritor, membro da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores de Goiás e da Associação Goiana de Imprensa. E-mail: [email protected])
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