Opinião

Provável aumento de  casos de psicoses por possíveis encefalites virais (zika?)

Diário da Manhã

Publicado em 21 de março de 2017 às 02:43 | Atualizado há 8 anos

Há uma doença psiquiátrica chamada “psicose encefalítica” na qual o paciente tem uma infecção viral (em alguns casos mais raros pode ser bacteriana também, por exemplo sífilis, tuberculose, estreptococose do grupo betahemolítico de Lancefield, produzindo a chamada Coréia de Sydehan ou  Pandas) e passa a ter graves  distúrbios psiquiátricos (fugas, agressões, alucinações, delírios, sexualidade, alterações atencionais, cognitivas, perversões, ataques ansiosos, etc), que podem ser agudos ou mesmo sub-agudos e crônicos (a do sarampo, a chamada panencefalite esclerosante subaguda de Von Bogaert, costuma ser crônica).

Esses casos costumam ser relativamente raros em psiquiatria, exceto em epidemias, p.ex., entre 1920 e 1930 houve uma no hemisfério norte, a chamada psicose encefalítica letárgica de Von Economo. No nosso serviço, esses casos costumavam ser bem raros, uma média de um a cada 3 anos. Ultimamente veio ocorrendo algo diferente, assustadores cinco casos só nos últimos seis meses. Nossa impressão, enquanto  médicos psiquiatras do serviço, é de que algo “estranho” pode estar acontecendo. Uma dessas pacientes, da qual foram conseguidos os exames (há muita dificuldade disso no SUS) manifestou  infecção passada pelo vírus da zika. Como este vírus está associado com  tropismo para o sistema nervoso central, com manifestações autoimunes importantes no sistema nervoso ao nível da medula espinhal /troncular (síndrome de Guillan Barré , síndrome de Miller-Fisher), pode-se postular que esses processos autoimunes também possam atingir o encéfalo, sobretudo em suas regiões mais “proximas do tronco/medula”, ou seja, basais, subcorticais, mesodiencefálico-límbicas, hipotálamo-subtalâmicas, prosencefálicas.

A seguir, como ilustração comprobatória, transcrevo nosso caso mais recente.

RELATORIO MÉDICO HOSPITALAR / HOSPITAL PSIQUIÁTRICO ASMIGO

Paciente X, feminina, 16 anos.

Paciente foi encaminhada a nosso serviço de psiquiatria infanto-juvenil , advindo de hospital de doenças tropicais, UPA e pronto socorro psiquiátrico. Iniciou quadro psiquiátrico, agitação, alucinação, após 5 dias de sintomas virais, mãe imputou a gripe. Motivo do descarte de doença neurológica foi tomografia  crânio – TC e Liquor (rotina) normais. Sem  eletroencefalograma – EEG. No entanto, ao chegar ao nosso serviço, notamos vários indícios de acometimento encefalítico (provavelmente autoimune, Adem [mas também podendo se tratar de encefalite viral aguda, algo, no entanto, praticamente descartado por falta de pleiocitose do liquido cefaloraqueano]): provaveis crises convulsivas vegetativas (alteração de ritmo cardíaco, taquicardia, alterações do termostato central, midríase paralítica), prováveis  crises convulsivas Tonico-clônicas, movimentos mioclônico-coreiformes, Babinski à direita, hiporreflexia osteotendinosa, torpor, modificações bruscas do ciclo vigília-sono,  alterações dos mecanismos da deglutição, astasia-abasia, dispraxia, desaferentação ambiental, sonolência, “despertares súbitos”. Há sintomas neurodislépticos importantes (uso de neurolépticos), tremores, possíveis sintomas coreoatetóticos, que mascaram os sintomas acima. Resposta terapêutica aos  prováveis sintomas comiciais descritos acima com uso de benzodiazepínico endovenoso. Crises com início parcial,  hemi-dimídio direito, e posterior progressão generalizante.

TC costumam ser normais em Adem. Liquor  pode ser normal, sobretudo sem bandas oligoclonais, eletroforese de proteínas, exames imunosorológicos específicos. Apenas celularidade (pleiocitose), bioquímica, proteinoraquia, glicorraquia, Baar, podem não dar resultados consistentes na Adem. Mesmo a Ressonância Magnética (RM), em muitos casos, pode não apresentar leucoencefalopatias ou distrofias em grande parte dos casos, sobretudo antes de um prazo razoável, que pode chegar a 6 meses ou mais. EEG pode mostrar lentificações teta-delta localizadas ou difusas, complexos de Rademacker-like, mas, em casos de lesões predominantemente subtalâmicas, ou mesmo subcorticais, pode cursar com aspecto normal, tanto sem lentificações paroxísticas, difusas ou localizadas (indícios de disfunção córtico-subcortical) quanto sem grafoelementos irritativos epileptiformes. No entanto, no caso em tela, seria importante , ao nosso ver, EEG.

Um EEG prolongado poderia mostrar a presença ou não de atividade irritativa comicial, neste caso requerendo medicação antiepiléptica contínua. Elementos delta-teta difusos poderiam apontar para o diagnóstico indireto da encefalite.

Paciente não parece ter indícios de catatonia, seja esquizofrênica seja bipolar, não há angústia, indícios de melancolia. Paciente tem propósitos delirantes ocasionais , quando “acorda” (p.ex., “tenho medo de médicos”), mas estas manifestações psiquiátricas nos parecem decorrentes  da alteração da vigilância, da cognição, do ciclo vigília-sono, do onirismo conseqüente, e não de mecanismos propriamente delirantes. Tanto que a paciente manifesta estes propósitos (“medo dos médicos”) sem conteúdo afetivo delirante coadjuvante. O “abrupto despertar”, com certa lucidez de consciência, em alguns momentos, também falam a favor de clínica de  acometimento hipotálamo-mesodiencefalo-periventricular.

Paciente não tem  elementos que se costumam presentes na catatonia afetiva tais quais: o negativismo, recusa, oposição ativa, disforia, hipotimia, propósitos delirantes niilistas/ruína, paratonias, perplexidade, “ar assustado”, “medo”, ideias ou visões de “fim de mundo” ou catastrofismo, recusa de tratamento, falta de insight-anosognosia, delírios envolvendo persecutoriedade, referencia, dismorfofobias.  As alterações abruptas do ciclo vigília-sono que se observam  na mesma e o entorpecimento também não fazem parte da catatonia afetiva, comumente, estando mais ligados a fenômenos subcorticais-mesodiencefálicos-encefalíticos.

Sugestão de suspensão de neurolépticos, já que não se trata de psicose catatônica ou afetiva, ao nosso ver. Sugestão, em caso de Adem, que parece ser a hipótese clínica, de medicação imunossupressora, eventualmente imunoglobulina humana, plasmaferese. Como dito acima, eventualmente , uso de anticonvulsivantes, se indicado. Muito cuidado e ver a efetiva necessidade do uso de antipsicóticos, por causa de deletérios efeitos colaterais e eventuais pioras no quadro epiléptico/encefalítico/extrapiramidal/motor/disfágico.

Em caso de EEG prolongado e demais exames sugeridos acima, normais,  e diante de eventuais  novas , circunstanciadas, e comprovadas evidências de distúrbios psiquiátricos (às vezes até sequelares postencefalíticos) nosso serviço hospitalar de psiquiatria poderia absorvê-la novamente.

Goiania, 17.3.17

Aqui em anexo, neste artigo, reproduzo o EEG de uma de nossas pacientes, claramente “encefalítico” ,  lentificações  teta-delta localizadas e generalizadas.

Caso se confirme uma tendência do zika para a produção de encefalites autoimunes desse tipo, poderemos estar em face a um problema importante de saúde pública, uma vez que as seqüelas destes casos, sejam neurológicas (motoras-sensitivas ), sejam psiquiátricas (cognitivas, psicóticas, caracteriais) podem revestir-se de grande gravidade.

Infelizmente nosso sistema de saúde, cada vez mais público e, por isso mesmo, cada vez mais caótico, ao nosso ver, e de acordo com a experiência que tivemos com os casos, não nos parece bem preparada para facear problema de tamanha complexidade. O que poderíamos esperar, mais uma vez, diante de nossa penúria científica – e enquanto brincamos de samba e futebol – é que algum país trabalhador e científico do hemisfério norte produza uma vacina anti-zika e venha nos salvar…

 

(Marcelo Caixeta, médico psiquiatra.  Escreve as terças, sextas, domingos no Diário da Manhã (www.impresso.dm.com.br )

 

]]>

Tags

Leia também

Siga o Diário da Manhã no Google Notícias e fique sempre por dentro

edição
do dia

últimas
notícias