Quem não trabalha, atrapalha
Diário da Manhã
Publicado em 19 de dezembro de 2015 às 23:40 | Atualizado há 9 anosEu estava apressado pelas ruas, cuidando dos meus múltiplos quefazeres, nos tempos que longe vão, quando um precipitado senhor, abordando-me, lançou-me aterradora acusação: — Sedutor! Fitei-o estupefato, sem nada poder entender; e o homem, reportando-se a uma construção beneficente que executávamos na época, graças a ajuda de Deus, dos bons espíritos e da generosidade do povo anapolino, tornou-se mais explícito: — Eu sei que você conquista mocinhas por aí e, depois de as envolver com a sua lábia ardilosa, consegue enganá-las, obrigando-as a executar trabalhos pesados naquela “maldita construção” … Eu sei disso! Percebendo a estas alturas, que estava um tanto alterado, forjou um tom paternal, abaixou um pouco a voz, e expôs com atitudes de bom conselheiro: — Em obras de caridade, não se usa desses expedientes… Tirou o chapéu, alinhou os cabelos muito brancos que denotavam uma responsabilidade que nunca teve e, sentado no cano de sua bicicleta, ajuntou: — Sou espírita há trinta anos e sei que essas organizações não se erguem à sua maneira… Se quer um conselho de um irmão bem mais velho e experiente, esqueça esse Lar de Crianças, pois tudo em vocês, jovens, é fogo de palha… E deixe de seduzir as moças e enganar os rapazes!
Examinei, em silêncio, o veterano, e pude compreender a razão de toda a sua revolta: o meu modesto trabalho na Doutrina Consoladora apenas incomodava agora a sua consciência, naturalmente fustigada pelos seus trinta anos de Espiritismo ocioso. Forcei um sorriso como quem desejava parecer “superior”, e esforcei-me o máximo para não responder-lhe um só til, bati suavemente no seu ombro e, assim despedindo-me, estuguei o passo e fui cuidar do meu dever.
No domingo próximo, estávamos todos — moços, moças e gente de todas as idades — trabalhando na construção da casa beneficente, irmanados num mutirão promissor, quando o mesmo cidadão chegou de bicicleta. Vendo ali tanto júbilo num esforço coletivo, passeou os olhos pelas paredes, pelos andaimes, pelos montes de tijolos e, vermelho, quase espumando de raiva, não conseguindo mesmo disfarçar a sua indignação, juntou-se a mim e, de novo, me acusou, apontando as moças com o indicador: — Veja só quantas moças ludibriadas pela sua conversa macia e perigosa… Pobrezinhas… A cada uma, em particular, você prometeu, quem sabe, “véu e grinalda”, e sabe Deus em que circunstâncias… Você constitui uma ameaça à sociedade!
Foi então que, sem nada dizer-lhe, apontei para o alto de um andaime, mostrando-lhe uma jovem que lá estava muito feliz, em companhia de outras, entregando tijolos para os pedreiros. Ao vê-la, o homem esbugalhou os olhos e exclamou surpreso, atônito: — Minha filha? — Pergunte-lhe, disse-lhe eu, retirando-me, se ela foi… seduzida.
O confrade, agora mais indignado ainda, montou na sua bicicleta, visivelmente transtornado e, pedalando nervosamente, sem olhar para frente, trombou com um moço que conduzia um carrinho cheio de massa; o jovem amparou-o, impedindo que caísse e, fitando-o, disse-lhe, sorrindo: — Olá, papai! O veterano abriu os olhos desmesuradamente e exclamou: — Você também? Ao que o moço lhe respondeu: — Viemos com a mamãe.
Foi o que me contou um amigo.
Três dias de Espiritismo laborioso valem mais do que trinta anos de espiritismo ocioso.
Toda vez que uma pessoa é incomodada no seu “não fazer nada”, acha de levantar-se da sua negligência a fim de perturbar os que trabalham, e o faz sem a menor consideração, sem o menor respeito e, o que é pior, com muita precipitação, incorrendo, por isso mesmo, em lastimáveis enganos.
Emmanuel disse que “não existe fardo mais pesado que o fardo da preguiça”.
Quem nada faz, nada perde, porque, afinal de contas, nada tem mais a perder.
(Iron Junqueira, via e-mail)
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