“Saciologia” goiana na rebeldia intelectual de Gilberto Mendonça Teles
Diário da Manhã
Publicado em 16 de fevereiro de 2018 às 22:43 | Atualizado há 7 anosConheci o professor, ensaísta e notável poeta Gilberto Mendonça Teles, no Liceu de Goiânia, no início de 1960, dele recebendo preciosas aulas de português e literatura. Quantas vezes saíamos da sala de aula e logo ali perto, na Churrascaria Vera Cruz, na Avenida Araguaia, além de um gostoso churrasco acompanhado de cerveja e cachaça, apreciávamos as oportunas orientações e declamações poéticas do Gilberto Mendonça Teles.
Em 1964, ao publicar o importante “A Poesia em Goiás”, foi convidado a vir a Mineiros proferir palestra intitulada “Ilhas culturais do Brasil”. O registro histórico de sua presença em Mineiros, com Maria e o jornalista Domiciano Faria, virou artigo de jornal e capítulo de livro. Se não bastasse, autografou o livro citado “À sta. Francisca Alves de Rezende. Abraço, do Gilberto M. Teles. Mineiros, 6/9/64”, com a qual o escrevinhador mantinha namoro para casamento.
Prossegui, nas minhas inquietudes intelectuais, mantendo relacionamentos com o querido Gilberto, de vários modos, ainda mais pelo fato de ter tido sorte de ter como colega de Faculdade de Direito, na ora PUC, o seu irmão, José Mendonça Teles, outra revelação dos “Teles” a quem muito devo, sonhando ser escritor. Nos últimos tempos os encontros foram mais frequentes, em eventos culturais e na AGL, onde comparecia e recebia justas homenagens, como a de ter sido o acadêmico homenageado do ano de 2017.
Os fatos e os artigos que publico no DM, certamente convenceram o caro Gilberto a estreitar e manifestar a nossa amizade e consideração, em diálogos, livros enviados, autógrafos e textos a mim encaminhados, alguns transcritos:
“Parabéns meu caro Martiniano. Excelente a sua crônica sobre Amaury de Menezes, que também admiro. Abraço saudoso do Gilberto. 17 de maio de 2017.”
“Meu estimado Martiniano J. Silva,
Me surpreendi alegremente com as referências à Saciologia Goiana no seu último artigo. Sempre os leio e por eles acompanho não só a força intelectual da sua inteligência criadora. Como o sentido da realidade goiana que emerge de cada artigo que você escreve.
Eu cheguei a lhe dar um exemplar do meu Lirismo Rural, na AGL? Se não, remeto-lhe um na primeira oportunidade. Abraço agradecido do Gilberto Mendonça Teles. 20 de dezembro de 2017”.
Aqui Gilberto refere-se a parte do capítulo denominado “Dominação rural da cidade”, do livro que estou escrevendo: “Mineiros: A Cidade na História”, no qual o livro de Gilberto é estudado, revelando suas primorosas qualidades de poeta e ensaísta. Enfim, enviou-me “Lirismo Rural: O Sereno do Cerrado”, edição 2017, traduzido para o inglês, bilíngue portanto. É o primeiro que vou ler, após leitura de “Os Irmãos Karamazovi”, de Dostoiévski. Gilberto autografou-me o livro citado, carinhosamente:
“Ao meu ilustre confrade
Martiniano José da Silva.
O abraço afetuoso do Sereno,
Este seu admirador do cerrado.
Gilberto M. Teles.
Rio, 12.1.2018”.
Acontece que a revolução ou Golpe de 64 no Brasil, mais os retardamentos ou anacronismos da literatura e da gestão pública em Goiás, para mim forçaram o Gilberto a deixar as terras onde nasceu, sem fazê-lo na sua subjetividade, onde o seu telurismo rural, goiano, é dos mais significativos, profundo, autóctone, de originalidade e rebeldia espiritual raras, de modo especial na poesia, tentando erradicar ignorância ou rudeza já intoleráveis. Mostra isso numa “Paródia”, ao ganhar o Prêmio Jabuti de 2011, em que faz alusão ao livro “Os Pecados da Tribo”, vendo-se no meio dos escritores goianos que ainda discutem se há ou não literatura em Goiás:
PARÓDIA
“Existe no centro do Brasil
Uma região banhada ao Norte
Pelos rios Paraná e Tocantins
Ao Sul, pelo Aporé;
A Leste pelo Paranaíba;
E a Oeste pelo Araguaia.
Ali habitam três
Tribos mui civilizadas, mas que não se
reconhecem entre si:
a – a que vive fazendo
ou pensando que está
Fazendo literatura;
b – a que vive discutindo
se há ou não literatura na região;
c – a que não lê nem estuda, mas vive
dando palpites nas discussões sobre
Literatura”.
Entre outras estratégias, após refletir e planejar, Gilberto procurou o Rio de Janeiro e Uruguai, como asilo necessário, onde ampliou e aprofundou seus estudos, ganhou prêmios, foi reconhecido, dali passando a assistir e questionar os atrasos citados, realmente esquisitos. Assim, já farto ou de “saco cheio”, após estudar os principais significados do personagem Saci, inclusive no âmbito da cultura africana, no remanescente de Quilombo Kalunga/Calunga, houve por bem criar a oportuníssima metáfora chamada “Saciologia Goiana”, convertida no livro homônimo, editado em 1982 no Rio de janeiro, a sair em 10ª edição, prefácio Carlos Gomes de Carvalho, no qual ninguém é mais “Saci”, com talento, concentração e admirável dedicação, do que o próprio Gilberto. Nenhum dos seus livros, foi mais objeto de estudos e interpretações no ambiente acadêmico das universidades do que “Saciologia Goiana”. Nenhum, o mais debochado, irônico, satírico, rebelde. A Nota que transcrevo, escrita por Gilberto a sair na 10ª edição, a mim encaminhada sugerindo publicação, é sintomática, mostrando o quanto Ele foi hábil na peleja rechaçando e combatendo o atraso.
“Nota para a 10ª edição de “saciologia” goiana
Gilberto Mendonça Teles
Depois de quatro anos trabalhando no Uruguai, recebi em novembro de 1969 a notícia do A-I 5. Pensei logo em voltar a Goiânia, mas a cidade está muito perto de Brasília e não se fazia nada ali sem consultar os coronéis da Capital Federal. Optei assim por vir (o meu porvir) para o Rio de Janeiro, onde logo consegui trabalho e prêmios literários. E comecei a pesquisar e escrever, entre janeiro de 1970 e 1981, um livro de poemas sobre Goiás. Dei-lhe o título de Saciologia Goiana e foi editado pela Civilização Brasileira em 1982, a convite de Ênio Silveira que me pediu o original.
O título de Saciologia goiana provém da montagem eisensteiniana – do verbo saciar (estar farto, cheio) + sociologia (relações conscientes ou não entre seres e pessoas de um mesmo espaço social e/ou imaginário) -, tendo como pano de fundo a estória de um “Saci Saciado” com os acontecimentos políticos, principalmente os de 1964 em Goiás. Eu havia visto o filme O Couraçado Potenkin num Cine Club de Montevidéu e, pelos debates, fiquei encantado com a técnica da montagem que me lembrou a escrita cuneiforme, em que o pictograma para designar “mulher” é um triângulo equilátero com a base para cima e fendido no ângulo inferior [?]; e o de “montanha” são três montes: um em cima e dois em baixo, em forma também de triângulo [?]. Combinando-se as duas figuras tem-se um ideograma com a significação de “mulher estrangeira”, ou seja, a que veio do outro lado da montanha.
Mas o pano de fundo mais sólido foi o da cartografia goiana, quando não havia ainda o Estado do Tocantins. De repente, olhando o antigo mapa, vi sair de dentro dele o corpo do Saci, com a sua única perna (melhor: sem perna, inteiriço) se identificando com as fronteiras do mapa de Goiás: a perna totalmente fálica do Saci era o mapa do meu Estado, que ia possuindo o Brasil por dentro, limitando-se com quase todos os estados, quer dizer, o do meu estado de espírito quando escrevia os poemas para um volume que ainda não tinha título. Aí me apareceu “Saciologia”: reunião de todos os traços do Saci com as suas diabruras e libertinagens no Planalto Central e pelo Brasil inteiro.
Foi a partir de então que comecei a me dar conta de que a malandragem do Saci provinha da sua própria forma fálica, tal como a descreveu Hugo de Carvalho Ramos: Um negrinho, com um gorro vermelho, um cachimbo, uma cabaça de feitiço nas costas e uma perna só, com a qual ia pulando as “moitas” do cerrado. O conto de Hugo foi escrito em 1910, sete anos antes do famoso inquérito de Monteiro Lobato (aliás, Lobato publicou o livro do escritor goiano no mesmo ano em que fez o inquérito (1917), o que nos leva a pensar que foi inspirado pelo autor de Tropas e boiadas. Mas nem Hugo de Carvalho Ramos nem Monteiro Lobato atinaram com o sentido fálico do Saci.
Percebi logo que o Saci era uma autêntica figura do phallós de um negro que, de tanto ver as suas filhas, irmãs, mulheres serem possuídas pelos brancos, sem poder fazer o mesmo, pôs a funcionar o seu imaginário – juntou mitos greco-latinos com mitos africanos e indígenas da América (o yacy yaterê dos guaranis, por exemplo) e criou um falo do tamanho de um menino que saiu por aí possuindo as mulheres dos seus senhores. Um perfeita réplica moderna do deus Príapo.
Foi portanto por aí que comecei a pesquisar a origem do Saci, coisa de que Monteiro Lobato nem quis saber. Pude descobrir que o lado histórico e fálico do Saci pode ser assim explicado: Primeiro, até o fim século XVIII não há notícia do mito na antropologia dos viajantes e cronistas brasileiros. Pode ser até que algum francês, entre os muitos M. Sacy (principalmente teólogos e viajantes, como M. Lemaistre de Sacy, tradutor de uma famosa Bíblia) possa ter alguma coisa com a história lendária do nosso Saci, sobretudo se o relacionarmos a M. Sylvestre de Sacy com a história do café no início do século XIX, quando começou a se intensificar, ao mesmo tempo, a escravidão dos negros africanos e a cultura do café no Brasil.
No norte de Goiás, na bacia do rio Paranã, vivem hoje os negros Calungas, provenientes de vários quilombos formados por gente que chegava fugida das minas de ouro que se iam extinguindo. Parte deles se cruzaram com índios Canoeiros, de pele negra, com verdadeiro ódio aos brancos, como aconteceu em 1962, decepando seios e sexos dos brancos que encontravam. É o que registramos na p. 254 de A Poesia em Goiás (p. 253, 1ª ed., 1964). Em companhia do jornalista Domiciano de Faria (meu grande amigo, natural de Alto Paraíso, cidade vizinha de Cavalcante e de uma das comunidades Calungas, visitei a região, onde ainda tenho alguns alqueires de terra, naturalmente invadidos…
Com esta nova visão do Saci, fiz com que o sujeito lírico de Saciologia goiana passasse a ser identificado com o Saci, uma coisa assim como se o gmt (o gemetê ou o gilmete do e-mail) virasse um Saci e saísse pulando as “moitas” e fosse “batendo as pernas no cerrado”, igual no poema “Geografia do Mito”, de Saciologia goiana, onde se diz que
O saci-goiano é do pererê:
passa o ano todo junto de você,
erguendo saia de moça dengosa,
pulando cerca e contando prosa,
ver redemoinho de poeira
junto à porteira,
numa perna só,
com seu “lápis” preto
fazendo soneto
de vento e cipó.
O Saci é como um “lápis preto” que o poeta escolheu para escrever a sua, dele, história um tanto fantástica. Fiz com o sujeito do meu livro tomasse a forma fálica do Saci para poder sugerir/dizer/fazer/expressar o que, pela ética de um professor universitário, não parecia bem. O poeta estima que conheçam, pelo sim e pelo não dos poemas de Saciologia, as alegrias do Autor, sua fanfarronice e o seu puro amor à terra natal. Na parte popular do livro – a de cordel –, o narrador do poema diz logo no início que vai cantar o Brasil de Goiás e começa dizendo “que preciso achar no tinteiro / as artes de satanás:
Um brasil que tem o jeito
comprido, de mangará,
forma de mapa e respeito,
mutamba de índio goiá,
o saci mais-que-perfeito
que andara um dia por lá.
Mas antes, também no início na parte erudita –, celebra a sua mulher, nascida sob o signo de Capricórnio; o poeta a vê como a musa de Homero e pede-lhe que diga (que cante) o que ele finge não saber dizer:
E canta mais, moça de olhos
morenos e companheira antiga dos incontáveis
retornos. Canta a ti mesma, o teu murmúrio e certeza,
tua voz interior, tua presença discreta,
a limpa categoria informal que te faz múltipla,
harmonizando o semestre em forma de água e de terra,
pondo-te no perfil dos dias, meses e anos
como esses belos clarões capricórnios de dezembro.
Depois, é que se lembra de pedir a Iara, a que sobe das águas e “encanta o azul da inconstância”, para, com o Saci, ajudá-lo a ampliar sua estória “além das linhas do mapa/ e aos quatro cantos do mundo / que escondo no meu Goiás”.
Saciologia goiana é uma unidade de significação dividida em quatro partes:
I – PREFÁCIO / PROGRAMA – Manifesto,
II – SOMBRAS DA TERRA – a parte culta e maior do livro,
III – CAMONGO – a parte popular: O livro de cordel e
IV – ANTOLOGIA- homenagem a Hugo de Carvalho Ramos.
Sairá neste ano a sua 10ª edição, bem anotada por MARIA DO ROSÁRIO DE MORAIS TELES; novamente com o prefácio de CARLOS GOMES DE CAVALHO; e com ilustrações de VINÍCIUS FIGUEIREDO. Ao contrário de vários livros meus, este nunca recebeu nenhum prêmio, a não ser o da Fortuna crítica de Saciologia goiana, reunida pela Profa. Dra. THEREXINHA MUCCI XAVIER: Rio de Janeiro: Edições Galo Branco, 2011, 168 p. Um coisa é certa: é o meu livro que mais tem sido objeto de teses (Mestrado/Doutorado) e de projetos de estudo universitários do Brasil e até do exterior.
Rio de Janeiro, 1 de janeiro de 2018.”
(Martiniano J. Silva, advogado, escritor, membro da Academia Goiana de Letras e Mineirense de Letras e Artes, IHGGO, Ubego, mestre em história social pela UFG, professor universitário, articulista do DM – martinianojsilva@yahoo.com.br)
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