Sociedade tribal
Diário da Manhã
Publicado em 5 de outubro de 2018 às 23:57 | Atualizado há 6 anosNos processos eleitorais, oferece-se aos eleitores “um lago azul e tépido”. O desenvolvimento social e econômico seria o maná oferecido sem esforço pelos céus para quem aceitar o programa do candidato e entregar-lhe o poder. Vende-se a ideia de que o desenvolvimento é um processo tranquilo, sem resistências internas e que, uma vez “dada a partida”, desaparecem os problemas e gera-se a energia para a sua continuidade.
Nada mais falso. O desenvolvimento econômico, isto é, o crescimento da quantidade de bens e serviços à disposição da sociedade (condição necessária, mas não suficiente para o desenvolvimento social) depende da produtividade média do trabalhador. É um fenômeno tempestuoso, complicado, desigual e no qual as relações sociais entram num processo dinâmico em que a posição relativa de cada um se altera de acordo com a sua resposta aos estímulos que recebeu. Quem corre fica parado, quem fica parado é atropelado.
Ele é o resultado de boas instituições que produzem incentivos na direção correta, combinado com um “estado de espírito” que emerge à medida que se cria uma solidariedade tribal em torno de um objetivo comum. Foi aquele que viemos perdendo lentamente e que atingiu o seu clímax na profunda recessão iniciada em 2014.
O grande Bismarck, com sua sabedoria animal, afirmou que “nunca se mente tanto como nas eleições, nas guerras e depois de uma caçada”. Comprovamos essa verdade em cores, na reeleição de Dilma em 2014. Hoje a vivemos em três dimensões e multicoloridas. O “sentimento” é que a sociedade brasileira está dividida entre duas tribos antropófagas, da qual só pode sair um “desgraçado” vencedor que não suspeita dos problemas que vão destruí-lo.
Todos os candidatos supõem que temos um problema “econômico” para cuja solução existe uma “ciência” econômica (a do seu alter ego) que a provê, e da qual o seu assessor é o portador “salvacionista”. Talvez a tal “ciência” proposta por eles seja, apenas, a obediência às recomendações de sua igreja, parte de uma religião politeísta, dado o desrespeito que revelam com relação aos cânones do conhecimento empírico cuidadoso que vem se acumulando há séculos numa modesta disciplina que chamamos de economia. É uma pena, porque ela tem ajudado a aumentar o bem-estar dos países que a respeitam.
Não importa quem vai ganhar a eleição: todos terão de enfrentar os mesmos problemas, e todas as soluções serão amargas. Nesta vez o conhecido “estelionato eleitoral” pode custar muito caro e muito rapidamente para quem não os enfrentar. É irrelevante o que tenha dito o vencedor. Ele não escapará de ter de lidar com o problema da Previdência (alguns negam que ele exista) e de continuar a pôr ordem na desastrosa situação fiscal, o que exigirá o controle das despesas e o reconhecimento claro das prioridades. O prometido “lago azul e tépido” será, provavelmente, um “lago poluído e frio”.
Os programas dos candidatos são pura revelação de desejos, às vezes até contraditórios. Têm absoluto desprezo (todos, sem exceção) pelas limitações físicas internas e externa e pelas políticas que condicionam a nossa sociedade. Alguns são “mágicos” (“na hora Eu resolvo”). Outros são “patéticos” (“vamos voltar ao passado glorioso”, que eles mesmos destruíram). Às vezes, são “puro delírio”: as esquerdas “radicais” se distinguem por sua generosidade infelizmente desinformada da lógica insuperável da contabilidade nacional.
Nosso problema econômico tem causas: 1. A disfuncionalidade crescente do processo político. 2. A expansão do desrespeito à independência e à harmonia dos Três Poderes. A mais perfeita política econômica, se existir, não será produto da invenção ad hoc do cérebro peregrino que assessorou o vencedor, mas de cuidadoso suporte empírico. Só terá chance de aplicação, entretanto, se levar em conta outro fato: a necessária cooptação do Congresso.
A sociedade cansou de assistir e perdeu a paciência com os últimos anos de crescimento medíocre. O quinquênio 2012-2016 foi o pior do século. Isso a empurrou para o dilema eleitoral que vive. O importante é que as instituições estão vivas e que a Constituição será respeitada, porque é para isso que existe o “garante” do Supremo Tribunal Federal. O resultado eleitoral, seja qual ele for, será apenas mais um aprendizado dentro do regime democrático, hoje cláusula pétrea. Será confirmado ou rejeitado livremente nas urnas, depois de uma batalha dura em 2022. É assim que o Brasil avança, aos trancos e barrancos.
(Delfim Netto, formado pela USP, professor de Economia, foi ministro e deputado federal)
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