Tempos de escolha
Diário da Manhã
Publicado em 24 de janeiro de 2017 às 00:21 | Atualizado há 8 anosPor três anos, a população de Brasília assistiu ao governo do Distrito Federal e ao governo federal construírem, ao custo de R$ 2 bilhões, um estádio para 70 mil espectadores – em uma cidade em que seus times carecem de torcedores – enquanto a poucos quilômetros seu Teatro Nacional estava fechado e se degradando.
Diante deste desperdício de recursos e deste crime contra a cultura brasileira, os artistas de Brasília silenciaram por duas razões: a afinidade em relação aos governos federal e local, e a tradição brasileira de considerar que os recursos fiscais são ilimitados, sem disputa entre as diferentes prioridades.
O caso de Brasília não foi único: nos últimos anos, dezenas de museus, cinemas, teatros foram sendo depredados, degradados e abandonados, ao lado de novos estádios e outros gastos públicos.
Mesmo entre os poucos artistas que se manifestaram em defesa da recuperação do teatro, nenhum protestou contra o desperdício do estádio por não perceberem que cada tijolo usado em uma obra não pode ser utilizado em outra; eles não tinham a percepção de que os gastos públicos exigem escolha: estádios ou teatros, viadutos ou escolas, palácios ou saneamento.
Felizmente, nesta semana, o ministro Roberto Freire e o presidente Temer assumiram o compromisso de recuperar e reabrir o Teatro Nacional Claudio Santoro.
Mas, diante das novas regras que definem um teto para os gastos da União, a vida política e fiscal brasileira vai entrar em um tempo de realismo na escolha de suas prioridades.
A disponibilidade de recursos orçamentários para uma ou outra finalidade vai depender de luta política na elaboração do Orçamento federal. Por isso, os artistas que até aqui assistiram calados a um teatro definhar na sombra de um estádio que surgia precisam estar atentos.
Será preciso convencer os eleitores para que eles convençam os governos e parlamentares a preferirem um teatro necessário a um estádio sem função. Caso contrário, democraticamente, o teatro continuará fechado e o estádio, vazio.
Os gregos separaram aritmética e dramaturgia, a fantasia nos palcos e a realidade na política.
Foi a aliança dos políticos de todos os partidos com os líderes de classes, patronais ou trabalhistas, que nos passaram a ilusão de que os recursos financeiros públicos seriam ilimitados, permitindo fantasias na política.
A partir de agora não bastará lutar por mais recursos para o teatro, será necessário lutar também para tirar recursos para outras finalidades.
A política subirá para o mundo da realidade, por disputas conforme interesses, preferências, lutas entre classes. A ilusão ficará no palco, nos roteiros das peças, nas partituras, no destino dos personagens, não na política e nas finanças.
Pena que muitos ainda preferem a ilusão fiscal do orçamento à ilusão artística do teatro; e o sectarismo faz com que alguns artistas fiquem contra a recuperação do teatro porque estará sendo feita por um governo ao qual se opõem.
(Cristóvam Buarque, ex-governador do Distrito Federal (PT) e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB), nos anos 90. Palestrante e humanista respeitado mundialmente. Escreveu esse texto quando era ministro da Educação. Dado a relevância vale a republicação)
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