Um italiano famoso andando anonimamente em Goiânia
Diário da Manhã
Publicado em 2 de setembro de 2018 às 00:01 | Atualizado há 6 anosNas primeiras décadas da formação social de Goiânia, os transeuntes das ruas da nova capital de Goiás eram, na maioria, goianos do interior ou brasileiros provenientes de estados vizinhos. À diferença de Brasília cuja formação social já começara com uma leva de nordestinos (popularmente chamados candangos) que se sentiam atraídos pela mão de obra oferecida com pagamento salarial em dobradinha. Hoje a capital federal congrega estrangeiros de toda parte e a capital goiana conta com uma parcela considerável de imigrantes, destacando-se entre eles os oriundi italianos. Não por acaso, de repente se depara nas ruas de Goiânia com empresários e empreendedores estrangeiros, dentre eles intelectuais e até artistas italianos, que só reconhecemos pelo timbre musical da língua de Dante Alighieri.
DOS ITALIANOS PIONEIROS
Dir-se-ia que italianos são como ciganos: encontram-se em toda parte. Se reunidos todos os italianos do Brasil, dariam para formar uma nova Itália (sem incluir, é claro, os desencarnados). Não foi em vão o sonho de Dom Bosco ao antever Brasília como futura capital do Brasil, cuja data de aniversário é a mesma da fundação de Roma. Goiás deve muito a italianos pioneiros que se instalaram em Goiânia, desde sua construção até a sua consolidação como nova capital do estado. Mas pelo menos dois nomes se tornaram legendários – Egidio Turchi e Nazareno Confaloni – ligados aos dois mais importantes setores da vida cultural de Goiânia: a educação e a arte. O professor Egidio como fundador da primeira faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, mais tarde incorporada à Universidade Federal de Goiás, e o frei Confaloni, reconhecido como mestre e pioneiro das artes plásticas em Goiás.
DA ALDEIA GLOBAL
Na sociedade múltipla de hoje, globalmente conectada via internet, somos todos ao mesmo tempo, cidadãos municipais e cidadãos do mundo, já que o mundo se tornou uma aldeia global, no dizer de McLuhan. Ninguém mais pode afirmar categoricamente que pertence a um só lugar e a uma só época, já que estamos todos em trânsito entre o aqui e o ali, entre o passado e o futuro, enquanto nossa autoimagem se desenha a cada momento em mutação contínua. Dessa forma, pensando em nós como outros e vendo os outros como nós mesmos, passamos a pertencer a diferentes grupos humanos e a diferentes lugares, pela nossa migração constante em busca de nossos sonhos. Não é de se estranhar, ver hoje um italiano famoso, de nome Cesare Lievi, andando anonimamente nas ruas de Goiânia, aonde veio participar de várias programações culturais, inclusive uma mostra do novo cinema italiano.
CAPOEIRA E MÚSICA SERTANEJA
Assim como o ballet e a música clássica nos iniciaram na cultura europeia (bem como o rock e a música country nos influenciaram no gosto musical dos gringos), também nossa música sertaneja, bem como o carnaval e a capoeira, atiçam a curiosidade de estrangeiros que vêm conhecer o Brasil, inclusive italianos, que ultimamente vêm a Goiás para se especializarem na arte de gingar escondida na forma lúdica da luta de escravos. Não é de se estranhar, pois, que foi a música sertaneja que trouxe a Goiânia o teatrólogo, escritor e poeta, Cesare Lievi, um dos principais intelectuais da Europa, pensador da modernidade, assim reconhecido por suas produções como autor e diretor de teatro, com atuação em diversos países europeus. Pois foi a música sertaneja, vale dizer, que trouxe o famoso italiano a conhecer Goiânia, ele que já tinha vindo ao Brasil décadas atrás. Mas por trás disso, uma historinha. Perguntei a Cesare Lievi quais as razões subjetivas e objetivas de suas vindas ao Brasil. Segue a resposta curiosa.
DA DUPLA GUSTAVO E DENNIEL
– “Comecemos pelas razões objetivas. Vim ao Brasil por volta de 1980. Visitei o Rio e Salvador, onde me entretive por mais de um mês com tios meus que ali habitavam, por mais de vinte anos. Para mim foi a descoberta de um mundo novo e de um novo eu mesmo, que me marcou profundamente. Movido pelas emoções dessa primeira viagem, aqui retornei mais tarde por diversas vezes, e nos últimos quatro anos, com maior frequência e regularidade. Em 2004, enquanto eu trabalhava na Ópera de Zurigo, compareci certa noite a um local onde se apresentava uma dupla sertaneja, Gustavo e Denniel.” Surge daí outro motivo principal do retorno de Lievi ao Brasil. Assim prossegue: – “Eu não conhecia esse tipo de música sertaneja (para mim a música brasileira era samba e bossa-nova) e fiquei impressionado ao ouvir aquelas melodias com seus ritmos melancólicos. Fiz aproximação com a dupla e logo nos tornamos amigos. Alguns meses depois os convidei para irem a Brescia, na Itália, no teatro de que eu era o diretor. Eu havia dedicado toda a temporada teatral à temática do estrangeiro (naqueles anos a Itália já estava se transformando de país da emigração em país da imigração) e me parecia que através da história de uma dupla sertaneja que buscava melhor sorte na Itália, eu poderia focalizar alguns problemas da sociedade italiana naquele momento”.
DA PEÇA “MEU AMIGO BAGGIO”
– “Então escrevi e dirigi uma peça intitulada “O meu amigo Baggio”, em que Gustavo e Denniel representavam e cantavam. Para o público italiano a descoberta daquele tipo de música foi uma surpresa agradável, e o espetáculo fez sucesso. Depois dessa aventura nossa amizade se consolidou e convenci os dois brasileiros a se tornarem meus assistentes. Por oito anos trabalharam comigo nos maiores teatros da Europa: em Roma, Zurique, Paris, Milão, Estrasburgo… Mas depois a saudade do Brasil começou a se manifestar. Fazer o quê, então? Devemos abrir uma pequena empresa – pensamos – não importa se não tenha relação com a música e o teatro. Gustavo se inscreveu no curso de gastronomia da PUC/Goiás, diplomou-se, frequentou na Itália um curso de panificação com Giorilli, uma referência nesse campo, e Denniel se transformou em administrador de empresa, e assim abrimos a Buon Gusto Roscaria que tem sede em Goiânia, no Setor Oeste, Avenida B, número 665”.
– “Agora passemos às razões subjetivas (prossegue Lievi) – No Brasil eu me sinto facilmente feliz. Basta-me chegar ao aeroporto de São Paulo ou de Brasília e ouvir a melodiosa língua portuguesa com sua doce nasalidade, para me sentir contente. Ou então, basta-me contemplar o céu de Goiás, sobretudo quando está sereno, e mergulhar no seu azul intenso e profundo”.
DA PRODUÇÃO TEATRAL
Quem quiser conhecer a ampla produção de Cesare Lievi, seja como escritor, dramaturgo e diretor de teatro, basta acessar o Google, que apresenta além de sua rica biografia, a relação de suas publicações em prosa e verso, inclusive como tradutor. Destacaríamos além da citada peça “Il mio amico Baggio”, o romance “La sua mente è un labirinto”, e a peça teatral “La badante”, em que o autor focaliza o papel das mulheres estrangeiras cuidadoras de idosos e sua emblemática relação de convivência com as famílias italianas. Perguntei a Cesare Lievi se as suas obras são mais numa representação simbólica como ficção, ou se consistem na projeção das atividades sociais da Itália de hoje. Vejamos a resposta do escritor: “Pode-se dizer que são ambas as coisas. Me interessam muito as relações entre as pessoas em uma sociedade, o seu modo de viver, de ver o mundo, de amar, gozar e sofrer; mas não as represento com olhar desencantado de observador realista. O meu olhar tenta captar também o lado invisível de tudo isso, o lado obscuro e misterioso, e para representá-lo, é claro, não deixo de recorrer também a metáforas, símbolos e imagens”.
DA RELAÇÃO BRASIL / ITÁLIA
Quais seriam as diferenças ou semelhanças mais relevantes – perguntei ao escritor – que gostaria de comentar fazendo uma comparação entre a Itália e o Brasil? – “Uma pergunta, esta sua, a que não é fácil responder sucintamente, porque as semelhanças entre os dois países, mas sobretudo as diferenças, são inumeráveis. Portanto me limitarei apenas a uma observação. A Itália é um país grande “no tempo”. Cada pedra, cada edificação, cada cidade (isso vale também para a sua paisagem) é resultado de uma estratificação temporal e cultural que deita raízes nos séculos, se não exatamente nos milênios. Tudo na Itália fala do passado do homem, do seu agir, da sua criatividade. Tudo fala “do passado” e, como tal, procuramos conservá-lo. O Brasil, por sua vez, é um país grande “no espaço”. As suas distâncias são verdadeiramente consideráveis distâncias. E o homem (o que é surpreendente para o europeu) aqui vive em amplo contato espacial sem, por isso, sentir-se conturbado. Eu ousaria dizer que esse espaço imenso constitui a sua casa. Esse espaço enorme está ainda em parte, não contaminado, não ocupado, não conhecido. É um tesouro. Que, espero, permaneça assim para sempre. Para vantagem dos brasileiros e de toda a humanidade”. (Nota. Essa declaração de Cesare Lievi nos desperta um deslumbramento de quem esteja vendo a imagem do Brasil projetada em nosso Hino nacional).
DA VIAGEM EM SI MESMO
A resposta a seguir nos reporta à primeira pergunta intrigante que fiz a Cesare Lievi, ao iniciar nossa conversa, qual seja, se o homem não viaja se não em si mesmo? Ao que ele respondeu, poeticamente: -“Certo. Tudo aquilo que o homem vê, sente, experimenta, não é algo que existe fora dele, na forma e na medida em que vê, sente e experimenta. Cada seu deslocamento, cada sua viagem é, portanto uma viagem em si e através de si mesmo. Resta, porém, definir o que seja esse “em si mesmo”. – “Una terra sterminata” – como disse Schnitzler, um autor de teatro austríaco, que aprecio muitíssimo. Se é assim, cada viagem é não concluída, é infinita, sem fundo, eu diria. Imprevisível. Surpreendente. Isso nos revela sempre (este é o grande fascínio) uma parte nova e desconhecida de nós mesmos. Mostra, aos poucos, quem somos”. Dessa forma, recaímos – como frisei – na aldeia global do mundo global italiano, já dominado no antigo império romano pelo célebre Giulio Cesare: “Vini, vidi, vinci”. Cesare Lievi veio, viu e venceu nossos limites contingenciais, com a fraternidade universal que nos liga à Itália.
(Emílio Vieira, professor universitário, advogado e escritor, membro da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores de Goiás e da Associação Goiana de Imprensa.E-mail: evn_advocacia@hotmail.com)
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