XX e XIX
Diário da Manhã
Publicado em 15 de fevereiro de 2018 às 22:28 | Atualizado há 7 anosNeste início do século XXI, o século XIX está em confronto com o século XX, no que diz respeito às possibilidades de sobrevivência da maioria da população, que se sustenta vendendo exclusiva ou predominantemente sua força de trabalho.
No século XIX, o capitalismo chegou à sua plenitude, colocando as empresas no centro do processo produtivo e constituindo um amplo mercado de trabalho, capaz de absorver o imenso contingente de proletários gerado desde o fim das relações feudais e, via aumento inusitado da produtividade, capaz, também, de baratear o acesso às mercadorias, levando Schumpeter a afirmar que o capitalismo não se firmou produzindo roupas finas para as princesas, mas vestidos de algodão para todas as senhoritas.
Só que as senhoritas teriam que ser, antes de comprar os tais vestidos de chita, praticamente escravas, nas fábricas insalubres da indústria de fiação e tecelagem e, depois de casadas, viver às custas dos maridos, cuidando da prole.
Ao longo do século XX, as relações de trabalho foram se alterando para evitar a superexploração dos operários. Ou melhor, foram sendo alteradas com muita luta, capitaneada pelos sindicatos. Primeiro, foi conquistada a redução da jornada de trabalho; depois, melhorias nas condições de trabalho no interior das fábricas; mais tarde, um conjunto de direitos trabalhistas. A partir de um certo momento, os sindicatos passaram a reivindicar aumentos reais de salários com base no aumento da produtividade. Era uma forma de obrigar os donos das fábricas a repartir com eles os ganhos decorrentes dos avanços tecnológicos e da organização taylorista do trabalho.
O século XXI depara-se com um modo de organização do processo produtivo fortemente centrado em novas tecnologias , e transcorre num ambiente muito diferente daquele da revolução industrial (apropriadamente denominado pós-industrial), gerando relações produtivas e de trabalho muito distintas até daquelas vistas nos meados do século anterior. As consequências sobre a vida das pessoas, agora em áreas urbanas espalhadas por todo o mundo, interconecatadas, foram muitas e parte delas não são, ainda, bem compreendidas. Nesse “admirável mundo novo”, o execrável mundo velho da superexploração vai, primeiro aos poucos e, ultimamente, muito aceleradamente, se firmando: um reduzidíssimo número de indivíduos e famílias abocanhou para si os resultados da produtividade espetacular atingida pela terceira revolução industrial. Nem a explicação de Schumpeter (de que o capitalista tem ganas de superacumular porque quer garantir as posses da família, no futuro) explica tamanha concentração da riqueza.
Como se defenderão os “trabalhadores” doravante? “Que fazer?” (Lênin). Esta pergunta remete a um debate da esquerda, do início do século XX, a respeito do papel dos sindicatos e dos partidos na luta em defesa dos interesses dos trabalhadores. Debate aparentemente já encoberto pelo limo da história, mas que deve ser o ponto de partida para se pensar o futuro. Afinal, cadê os sindicatos para defender os que vivem do trabalho (independentemente do que se chame, hoje, “trabalho”)? Não é à toa que eles foram os sacos de pancada dos neoliberais dos anos 1980-1990. Estavam perdendo espaço no ambiente “classe média” gerado pelo boom do pós-guerra, alicerçado nos ganhos de produtividade e nas relações políticas de cunho socialdemocratas, e começaram, naquelas décadas de triste lembrança, a ser frontalmente rechaçados por governos retrógrados (neoliberais).
Hoje, no Brasil, os sindicatos e suas centrais estão na lona. As lideranças (salvo raríssimas exceções) vivem da memória de um tempo em que um dos seus veio a ser Presidente da República. E viviam, materialmente, da contribuição anual compulsória, em extinção — como burocratas estatais, propensos à pelegagem. Nunca o sindicalismo foi tão necessário, no país, como agora; e nunca estiveram tão fracos, depois de terem se tornado as fortalezas dos anos 1980.
Pode ser que a forma de mobilizar e organizar os que vivem do trabalho passe por outros caminhos, diferente do sindical, consolidado no século XX, mas uma coisa é certa: sem sindicatos fortes ou instituições que os sucedam contra a superexploração, o século XIX estará de volta, com possibilidades de trazer à tona o XVIII. Os brasileiros que o digam!
Se nada for feito, como ficarão as senhoritas sem seus vestidos de algodão? Diriam as Marias Antonietas de hoje: “Que trajem lycra!”.
(Valdemir Pires, professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara)
]]>