A dor do filho sem pai no Natal
Diário da Manhã
Publicado em 23 de dezembro de 2015 às 00:11 | Atualizado há 9 anosO advogado Valério Luiz Filho não terá, neste Natal de 2015, a companhia do pai, o comentarista esportivo Valério Luiz. Não custa lembrar: é que ele foi assassinado em 5 de julho de 2012. A dor da ausência não apaga as lembranças afetivas. “Com a família, meu pai sempre foi muito carinhoso”, recorda-se, emocionado. Tive a sorte de ter uma infância estruturada e feliz, de intensa convivência paternal, observa. Segundo ele, 87 comunicadores foram vítimas de graves violações entre 2012 e 2014 no Brasil. “Foram 14 homicídios, 18 atentados contra a vida, 51 vítimas de ameaça de morte e 4 vítimas de sequestro”, dispara. Ele informa com exclusividade ao Diário da Manhã que, um dado triste, mas revelador, é que, dos crimes cometidos contra comunicadores no Brasil, 75% têm participação de agentes públicos.
Leia a íntegra da entrevista:
Diário da Manhã – Quantos jornalistas morreram nos últimos anos no Brasil e América Latina?
Valério Luiz Filho – Segundo levantamento de entidades representativas no tema, como Abraji [Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo], Artigo 19 e CPJ [Committee to Protect Journalists], 87 comunicadores foram vítimas de graves violações entre 2012 e 2014 no Brasil. Foram 14 homicídios, 18 atentados contra a vida, 51 vítimas de ameaça de morte e 4 vítimas de sequestro. No primeiro semestre de 2015, o saldo foi de 4 assassinatos, sendo um jornalista e três radialistas. No contexto da América Latina, apenas dois países superam o Brasil, pela evidente influência do narcotráfico: México, com 81 assassinatos entre 2012 e 2014, seguido pela Colômbia, com 56. Podemos dizer, então, que nossa posição nesse ranking é assustadora.
DM – O que apontam as estatísticas sobre a violência contra jornalistas?
Valério Luiz Filho – Um dado triste, mas revelador, é que, dos crimes cometidos contra comunicadores no Brasil, 75% têm participação de agentes públicos, entre eles políticos, policiais e outros membros do Estado. Geralmente, são retaliações à denúncias sobre corrupção, grupos de extermínio ou sobre mandos e desmandos de poderosos da região. Em 2013, depois de duas visitas a Brasília para tratar do caso do meu pai, a Secretaria Nacional de Direitos Humanos montou um grupo de trabalho sobre violência contra comunicadores no Brasil, produzindo um relatório de recomendações à Presidência da República, com o qual o Instituto Valério Luiz colaborou. Entre as recomendações está a federalização das investigações de crimes cometidos contra comunicadores pelo exercício da profissão, justamente para evitar influências políticas e econômicas locais na elucidação dos casos.
DM – Qual a data, ano, horário e as circunstâncias da morte de Valério Luiz?
Valério Luiz Filho – Valério Luiz morreu no dia 5 de julho de 2012, pouco depois das 14h, na porta da Rádio Jornal 820 AM, hoje Rádio Bandeirantes 820 AM, onde participava de um programa diário de esportes. Após o término do programa naquele 5 de julho, ele entrou em seu carro e foi surpreendido por um motoqueiro, que disparou seis vezes. As investigações da Polícia Civil concluíram que o crime se deu por retaliação às críticas jornalísticas do meu pai ao Atlético Clube Goianiense, em especial a Maurício Sampaio.
DM – Com quantos anos morreu Valério Luiz?
Valério Luiz Filho – Valério Luiz morreu com apenas 49 anos de idade.
DM – Como era o comportamento de Valério Luiz?
Valério Luiz Filho – Meu pai era polêmico nos microfones, mas sério, calado e discreto na vida pessoal. Com 25 anos de idade, converteu-se à religião das Testemunhas de Jeová, e isso delineou toda a sua vida a partir de então. Frequentava as reuniões religiosas três vezes por semana e gastava horas por mês naquele serviço de pregação, famoso por acordar as pessoas domingo de manhã. Tinha o pavio curto, é verdade, mas o respeito e a seriedade com que tratava as pessoas e as situações lhe emprestavam até um certo ar formal, como bem se lembram seus amigos e colegas.
DM – Como era a sua relação com ele?
Valério Luiz Filho – Com a família, meu pai sempre foi muito carinhoso. Tive a sorte de uma infância estruturada e feliz, de intensa convivência paternal. Lembro que, mesmo quando eu era bem novinho, meu pai conversava muito comigo, e de todos os assuntos, tratando-me de igual pra igual, como uma pessoa inteligente, cuja opinião importava. Isso me marcou profundamente. Se tenho uma boa autoconfiança hoje, devo isso aos estímulos que recebi. À exceção do ano de 2011, que passei fora de Goiás, trabalhando, sempre moramos juntos. Nossa casa era grande, ali no Jardim América, e inclusive era onde eu estava quando recebi a notícia do assassinato. Nos meses que antecederam o crime, andávamos só nós dois por toda a Goiânia, ele estava me ajudando no início da carreira como advogado. Certamente é e sempre será minha maior referência.
DM – Qual o papel de Manoel de Oliveira na formação de Valério Luiz?
Valério Luiz Filho – Primeiro filho do meu avô Mané, meu pai foi criado com dificuldades financeiras, segundo me contava. Antes de entrar, em 1967, na rádio Carajá de Anápolis, meu avô foi balconista das lojas Pernambucanas, feirante, vendedor de tecido e por fim ajudava minha bisavó Maria em um restaurante. Já em Goiânia, na rádio Difusora, as coisas melhoraram um pouco, mas meu pai teve uma infância simples, brincando nas ruas de Campinas. Eram outros tempos. Já adolescente, foi puxar fio no Estádio Serra Dourada, juntamente com seu irmão, Marcelo Oliveira, e com Edmo Pinheiro, todos colocados por meu avô Mané. Logo meu pai progrediu para a função de repórter, e trabalhou em quase todos os veículos de comunicação em Goiás. Muitos anos de sua carreira, no entanto, foram dedicados à estruturação e ao comando das equipes do meu avô. Podemos dizer, portanto, que as carreiras de Mané e Valério têm uma relação umbilical.
DM – Previsão de julgamento dos acusados?
Valério Luiz Filho – Tenho dito que o julgamento pode acontecer ano que vem, e é uma previsão realista. Vamos trabalhar pra que a data seja marcada o quanto antes.
DM – Qual o sentimento da falta de um pai assassinado de forma cruel e banal?
Valério Luiz Filho – São dois os sentimentos principais. Quando penso no crime, o que toma conta é a revolta. Quando penso no meu pai, nos momentos da nossa família, vem a tristeza por saber que ele não estará aqui para compartilhar tanta coisa que ainda acontecerá na minha vida e na das minhas irmãs.
DM – O que você foi fazer nos Estados Unidos?
Valério Luiz Filho – Em julho deste ano, proferi uma palestra sobre violência contra jornalistas no 10º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, em São Paulo, o que gerou um segundo convite: a participação, como debatedor, num simpósio sobre liberdade de expressão promovido pelo Consulado dos Estados Unidos, em parceria com a ONG Artigo 19, também em São Paulo, na Faculdade Cásper Líbero. Durante esse simpósio, o pessoal da Artigo me contou que, juntamente com Abraji e Fitert, haviam denunciado o Estado brasileiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na Organização dos Estados Americanos (OEA), por descumprimento justamente das recomendações daquele relatório finalizado em 2014 pelo grupo de trabalho sobre violência contra comunicadores, com o qual colaborou o Instituto Valério Luiz. Dada essa circunstância e a renhida luta no caso do meu pai, a Artigo 19 me convidou para a audiência em Washington, D. C., na sede da OEA. O objetivo da minha fala foi dar à Comissão uma visão concreta sobre como é difícil levar à justiça assassinos de jornalistas no Brasil, e que por isso deveriam cobrar do País o cumprimento das recomendações.
DM – Você pretende escrever um livro contando a dor da morte e o choro de um filho?
Valério Luiz Filho – Não pretendo escrever um livro sobre minha dor, que é algo particular, mas um registro completo sobre o caso é necessário. Tenho muito apreço pela memória, é ela que faz a tradição, a história, seja de uma família ou de um povo. Não sei se todos têm consciência disso, mas Goiás é uma terra curiosa, aqui acontece muita coisa estranha, e falhamos nos registros. Escrevermos mais sobre nós mesmos pode servir até de ponto de diálogo com outros lugares. E já que falamos sobre minha viagem aos Estados Unidos, o atual Relator Especial para a Liberdade de Expressão nas Américas, Edison Lanza, incentivou que eu informasse à Comissão Interamericana de Direitos Humanos tanto sobre como o caso do meu pai chegou tão longe quanto sobre o desenrolar a partir de agora. Segundo Lanza, as informações podem ajudar a compor um corpo de recomendações da Comissão para vítimas de casos parecidos.
DM – Novidades no caso?
Valério Luiz Filho – Em abril deste ano, o Tribunal de Justiça confirmou decisão que, ano passado, mandou todos os acusados a júri popular. Os cinco réus entraram então com recursos ao STJ (recursos especiais) e ao STF (recursos extraordinários), mas o seguimento já foi negado. Resta aos réus agora um último expediente judicial, chamado “agravo”, mas o júri já é realidade irreversível. Agora é só questão de tempo, de acompanharmos com atenção esse desenrolar recursal final, para enfim marcarmos a data do julgamento de todos eles.
“São dois os sentimentos principais. Quando penso no crime, o que toma conta é a revolta. Quando penso no meu pai, nos momentos da nossa família, vem a tristeza.”
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