Politica

Como diminuir a roubalheira

Diário da Manhã

Publicado em 18 de janeiro de 2016 às 22:12 | Atualizado há 1 semana

A burocracia em geral, e as leis que ela faz chegar ao Congresso para pronta aprovação, partem do pressuposto de que o cidadão comum, em especial o que lida com a Administração Pública, é antes de tudo um desonesto. Assim, a Administração Pública, reino encantado da tecnocracia, se arma de mil expedientes para impedir que o administrando, sempre supostamente imbuído de má-fé, lese o erário. Paradoxalmente, cria com isto o pântano onde vicejam as flores do mal – a corrupção. O Estado Tecnocrático cria dificuldades para vender facilidades.

No caso das empreiteiras de obras públicas, contudo, a desconfiança faz sentido. A experiência de décadas vem mostrando que o empreiteiro de obras públicas é quase um pirata. Descuide-se dele e os cofres públicos serão assaltados à luz do dia. Por mais que a legislação sobre licitações e contratos administrativos levantem muros de proteção contra os saqueadores, estes ainda encontram brechas por onde passar e fazer vazar, para seus bolsos, o dinheiro dos impostos.

Como e por que isso acontece? Um bom palpite é que, do ponto de vista conjuntural macro-político, o aumento alarmante da corrupção e da malversação de dinheiro público tem como causa remota o desaparelhamento da Administração Pública, que acabou reduzida à total impotência no que diz respeito à execução direta de obras de engenharia. Toda obra pública e todo serviço público, hoje em dia, são executados indiretamente por empresas particulares.

Mauro Borges é até hoje celebrado por ter modernizado o Estado de Goiás com seu Plano MB, implantando o planejamento. Mas o grande mérito dele foi ter aparelhado a Administração para executar diretamente as obras públicas. Ele criou, por exemplo, o Dergo e o Consórcio Intermunicipal, cujas máquinas implantaram a malha rodoviária estadual. Os dois órgãos já não existem há quase três décadas. A Agetop, sucedânea do DERGO e do Consórcio, não possui uma única pá com que possa tapar, ela mesma, os buracos das rodovias. Uma empresa particular faz esse trabalho.

O desapetrechamento da Administração Pública é o efeito da disseminação de um dogma do Neo-liberalismo, segundo o qual o Estado é incompetente e ineficiente, cabendo à iniciativa privada suprir o maior número possível de necessidades sociais. Se o Estado, ou a Administração Pública, não é capaz de edificar um simples muro, deve-se então convocar a iniciativa privada pra fazê-lo. A obra é, assim, cometida ao particular, que obtém o contrato depois de vencer um certame denominado “licitação”. Mais obras, mais licitações, mais roubalheira.

Outra boa explicação seria as falhas da legislação, com suas brechas pelas quais se passa por meio de artimanhas e conluios. O livro “Obras Públicas – Artimanhas & Conluios”, de Antônio Jorge Leitão, é um guia prático, e muito seguro, para todo administrador honesto que não condescende com a bandalheira. Porque às vezes não basta ser honesto. O despreparo mata as boas intenções. O Inimigo, isto é, os empreiteiros, desenvolveram técnicas sutis e extremamente eficientes para burlar a fiscalização, verdadeiros truques de mágicos de circo que iludem os mais tarimbados técnicos da área de gestão de contratos administrativos e de execução de obras. Sem falar que, em muitos casos, o truque é substituído pura e simplesmente pelo pagamento de propina aos que deveriam zelar pela coisa pública.

O livro de Antônio Jorge Leitão já está na 5a. Edição, revista e ampliada, com prefácio da Ministra Eliana Calmom. Foi editado pela Leud, uma das mais conceituadas editoras de obras jurídicas do país. O sucesso das edições anteriores abriu ao autor as portas do fechadíssimo mercado de palestras e conferências. Ele acabou deixando a carreira de professor universitário para dedicar-se a cursos livres e palestras sobre o fantástico mundo das licitações e dos contratos administrativos.

Jorge Leitão é engenheiro civil, mestre em Economia para Empresas, especialista em matemática e administração financeira. Já participou de duas missões internacionais da ONU por indicação do governo brasileiro. Atualmente é analista judiciário do Tribunal Regional Eleitoral da 1a Região, cuja principal função é gerenciar as obras de engenharia contratadas por aquele órgão. Mora em Brasília há 25 anos.

Sua experiência não advém apenas da leitura de milhares de livros e do exercício cotidiano de funções burocráticas. Ele também já foi empreiteiro de obras (prefere denominar-se “empresário”) por oito anos, no Estado do Tocantins. Esteve, portanto, do outro lado do balcão. E, embora afirme que faliu por se recusar a ser desonesto, o fato é que ele conhece bem o Inimigo. Militou no lado de lá.

Pulos de gato

O livro é muito bom. Melhor do que a grande maioria dos tratados de direito administrativo que circulam por aí, meras metafísicas administrativistas. Por não ter pretensões literárias, o texto, muito bem escrito, flui claro, objetivo e acessível a qualquer secundarista. Não deixa de ser, contudo, um livro de combate.

Leitão começa pela discussão de conceitos básicos finanças públicas, orçamento, licitação e contratos administrativos. Discute aspectos da chamada “Lei de Licitações”, a claudicante Lei 8.666/93, e a recente lei que instituiu o chamado Regime Diferenciado de Contratação, o RDC, que dispõe sobre as obras da Copa do Mundo, das Olimpíadas de das obras do PAC. O RDC, malgrado suas falhas, não deixou de ser um avanço em relação à 8.666. O autor observa que a tendência é o RDC ter seu raio de abrangência ampliado, reduzindo cada vez mais o espaço de aplicação da 8.666. Há notícias de que tramita no Congresso Nacional projeto de lei visando substituir a 8.666, incorporando nela os avanços do RDC.

A falta de uma legislação capaz de enfrentar os desafios da hora presente, aliada a desídia do Congresso em reformá-la, leva órgãos da tecnoburocracia a fechar lacunas e editar romas quase com força de lei. Os “achados” do Tribunal de Contas da União, consolidados em forma de “Jurisprudência”, não são, evidentemente, leis em sentido lato, nem mesmo jurisprudência. Mas a vasta experiência do TCU, de que o autor se serve largamente, subsidia otimamente qualquer projeto de atualização das leis vigentes. O governo e o Congresso agiriam sabiamente se assimilassem esta experiência.

O autor observa que a falha primordial da legislação, que abre largas avenidas para as maracutaias, é a pouca ênfase dada ao Planejamento. “Uma das primeiras lições para se evitar as artimanhas e conluios das empresas é planejar bem. Uma obra lastreada em planejamento precário e projetos básicos e executivos mal elaborados eleva exponencialmente as oportunidades para majoração de preços, seja durante o processo licitatório, seja durante a execução”, adverte o autor.

Exemplo disso foram as obras da Copa orçadas inicialmente em pouco mais de 2 bilhões de reais, acabaram custando mais de 8 bi. Jorge Leitão cita um exemplo de como um bom planejamento resulta em economia ao Erário: Quando esteve na China, soube de um prédio público, de mais de 30 andares, erguido em apenas um mês. Foi ver a coisa de perto e soube que à execução da obra precederam mais de dois anos de planejamento e elaboração criteriosa de projetos.

Antônio Jorge Leitão conhece dos dois lados da questão: já foi empreiteiro de obras; hoje, ensina a combater as artimanhas dos empreiteiros desonestos (Foto: Íris Roberto)

Um livro que desmascara, alerta e arma o gestor honesto para o combate aos saqueadores do erário Superfaturamento saqueiam cofres públicos,toda gente sabe que é por meio do superfaturamento que empreiteiras saqueiam os cofres públicos. Quase ninguém sabe o que é isso, como funciona, como se usa. É aqui que Jorge Leitão, tal como o Mister M, revela os truques e ensina aos gestores públicos a como não cair neles.

Sobrepreço é o primeiro passo para se chegar ao superfaturamento. Nos últimos anos, vários órgãos técnicos do governo, inclusive o departamento de perícias da Polícia Federal, desenvolveram ferramentas de aferição dos preços de mercado. Elaboraram índices e tabelas de preços paradigmáticos que orientam não apenas os técnicos orçamentistas como, de resto, os responsáveis pelo julgamento de propostas licitatórias.

Ocorre sobrepreço, ensina o autor, quando as cotações estão abusivamente acima dos índices paradigmáticos. Mas ainda que não haja sobrepreço, o superfaturamento pode aparecer lá na frente, sob a forma das inúmeras artimanhas de que são useiros e vezeiros os empreiteiros. Jorge leitão elenca nove espécies de superfaturamento, com várias subespécies. Descreve-as minunciosamente e apresenta técnicas de cálculo matemático para cada uma delas, cálculos que demonstram com a verdade dos números as artimanhas do contratado.

Pelo menos 4 dessas artimanhas merecem do autor um estudo mais extenso. Uma forma de superfaturamento – que é, em resumo, o pagamento de uma obra por preço final muito maior do que o que foi contratado – ocorre quando a obra é mal planejada. O mal planejamento leva a modificações do projeto, acarretando atrasos e gastos extraordinários. Surge daí os famigerados aditamentos, sempre com prejuízo para o erário.

Uma artimanha que acarreta danos seríssimos às finanças públicas, porque é um truque difícil de se desmascarar, é o infame “jogo de planilhas”, também conhecido eufemisticamente por “desbalanceamento”. É ali que a Administração compra gato por lebre. Ocorre quando há um desequilíbrio econômico-financeiro em desfavor da Administração. São várias as causas deste desequilíbrio, sendo uma delas as alterações de cláusulas de serviço. Jorge oferece inúmeros exemplos e inúmeros achados do TCU capazes de orientar o gestor público no combate a essa modalidade de artimanha.

Outra artimanha indefectível é o chamado jogo de cronograma, que ocorre na fase de execução. Nem, porém, é mais letal do aquele que atende pela sigla BDI, “Bonificações de Despesas Indiretas”. É o bicho mais arisco de todos. Tem previsão legal, mas sua composição e quantificação, sobre os quais a legislação é falha, dá margem aos mais escandalosos assaltos aos cofres públicos. BDI é a taxa cobrada pelo empreiteiro relativa a despesas indiretas e ao lucro pleiteado pelo empreiteiro.

É claro que o empreiteiro deve lucrar. Lucro é componente estrutural da economia capitalista. Sem lucro, nenhuma atividade econômica se sustenta. Mas certa hipocrisia contável leva muitos empreiteiros e concessionários de serviços públicos a mascarar suas pretensões, criando subterfúgios para obtenção se superlucros disfarçados de “despesas indiretas”.

Para começar, é preciso que o gestor tenha clareza do que seja despesa, gasto, custo, investimento e outras categorias contábeis que o leitor explicita. Sem uma nítida compreensão metafísica dessas categorias, o gestor sujeita-se a ter tapeado pelo empreiteiro. A Lei é omissa, mas o TCU, fechando a lacuna, obriga os licitantes a discriminar a composição do BDI. O próprio TCU, porém, reconhece que não há um critério universal para a composição do tal BDI. Cada caso é uma singularidade infensa a generalizações. Mesmo assim, a Corte de contas tem estabelecido critérios práticos para a identificação de BDIs extorsivos. E o autor acrescenta outras dicas ao gestor.

Conluios: 22 práticas manjadas

O autor se detém longamente na descrição dos artifícios fraudulentos usados pelas empreiteiras tanto na elaboração das propostas como na execução das obras. Entre os muitos artifícios usados vale destacar o infame “cartel” de empreiteiras, uma forma de burlar o carater competitivo da licitação.

Empresas formam cartéis com o intuito de democratizar a corrupção, tornando equânime a distribuição do butim. Quanto mais cartéis, maior o saque. O combate a este verdadeiro flagelo econômico não é fácil. Talvez porque a tendência dos agentes econômicos a sabotar o regime de livre concorrência seja uma compulsão neurótica de todo empresário. Antônio Jorge Leitão abre essa discussão transcrevendo uma passagem deliciosa de Adam Smith em “A Riqueza das Nações”. Escreveu ele que “homens de negócios do mesmo ramo raramente se encontram, ainda que para mero divertimento, sem que sua conversa acabe numa conspiração contra o público, ou em alguma tramoia para aumentar os preços”. Nem Marx nem qualquer socialista radical fez esta denúncia. Foi Adam Smith, o santo padroeiro dos liberais de todas as escolas.

O autor discorre perfunctoriamente sobre conceitos básicos de economia ( concorrência perfeita, monopólios etc) para, passando pela legislação de defesa da concorrência no Brasil, entrar no mundo sinistro dos carteis de empreiteiros. Aqui se trata dos “conluios” de que fala o subtítulo da obras.

O cartel, que assume variadas formas de conluio, é crime. Em licitação, eles atuam na fixação de preços por acordo entre concorrentes, no direcionamento privado da licitação, na divisão de mercado, na supressão de propostas, na apresentação de proposta pró forma, ni rodízio e na subcontratação. “De qualquer forma”, salienta o autor, “o resultado é sempre o aumento dos preços pagos pela Administração e a consequente transferência ilegitima de recursos para membros do cartel”.

O autor elenca 22 práticas manjadas que são indícios veementes de cartelização. A enumeração não é conclusiva, pois transgressores estão sempre inventando truques novos à medida que os tradicionais vão sendo desmascarados. Ele indica também as várias circunstâncias que ensejam a cartelização: estrutura de mercado, publicidade do processo licitatório, barreiras à entrada de novas empresas no mercado, interações frequentes entre licitantes, rigidez das licitações, propostas recorrentes em licitações frequentes, serviços ou produtos idênticos ou parecidos, nível reduzido ou nulo de alternativas e nível reduzido ou nulo de inovações tecnológicas.

Na sequência, o autor fornece um guia prático ao gestor público disposto a combater a cartelização, oferecendo ainda uma lista de tópicos a se considerar na elaboração do processo de contratação pública, entre outras sugestões úteis. Entre as propostas do autor, está o incentivo à ampliação de licitações internacionais e divulgação de editais no exterior. Também fornece informações práticas sobre como acionar a Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, órgão executivo de combate à cartelização.

Enfim, trata-se de uma obra de inegável valor, uma arma a mais a serviço da causa da moralização administrativa, uma valiosa contribuição as parlamentares interessados em aperfeiçoar a legislação pertinente. Uma obra didática muito proveitosa para estudantes de direito. Útil para qualquer um interessado em saber como empreiteiros nos roubam honestamente e como a honesta roubalheira deles poderia ser evitada. Uma próxima edição ficaria ainda melhor se viesse com um índice remissivo. Ficamos no aguardo.

Obras da ferrovia Norte-Sul foram alvo da Operação Trem Pagador do Ministério Público Federal em Goiás. De acordo com a denúncia os prejuízos aos cofres públicos chegam a quase R$ 900 mil

 

Obras no aeroporto de Goiânia estava prevista para ser concluída em 2014. Agora a previsão de entrega é março deste ano

“homens de negócios do mesmo ramo raramente se encontram, ainda que para mero divertimento, sem que sua conversa acabe numa conspiração contra o público, ou em alguma tramoia para aumentar os preços” – Adam Smith, em “A riqueza das Nações”

Os empreiteiros, desenvolveram técnicas sutis e extremamente eficientes para burlar a fiscalização, verdadeiros truques de mágicos de circo que iludem os mais tarimbados técnicos da área de gestão de contratos administrativos e de execução de obras. Sem falar que, em muitos casos, o truque é substituído pura e simplesmente pelo pagamento de propina aos que deveriam zelar pela coisa pública.

“Uma das primeiras lições para se evitar as artimanhas e conluios das empresas é planejar bem. Uma obra lastreada em planejamento precário e projetos básicos e executivos mal elaborados eleva exponencialmente as oportunidades para majoração de preços, seja durante o processo licitatório, seja durante a execução”, adverte o autor.

O cartel, que assume variadas formas de conluio, é crime. Em licitação, eles atuam na fixação de preços por acordo entre concorrentes, no direcionamento privado da licitação, divisão de mercado, na supressão de propostas, na apresentação de proposta pró forma, no rodízio e na subcontratação. “De qualquer forma”, salienta o autor, “o resultado é sempre o aumento dos preços pagos pela Administração e a consequente transferência ilegítima de recursos para membros do cartel”.

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